O Imperador dos trópicos: D. Pedro II, um monarca nu!

SCHWARCZ, Lília Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. – 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

D. Pedro II passou aos arautos da História tradicionalista do Brasil como um dos maiores chefes de Estado do país, caracterizado por sua fisionomia fatigada e em cujas longas barbas se evidenciavam um rosto pensativo que não demonstrava qualquer alteração em seu semblante. A posteridade se acostumara com essa imagem de um imperador sempre velho, usando roupas civis, em vez dos trajes majestáticos; acompanhado sempre de livros nas mãos, como uma forma de simbolizar a sua esmerada erudição. Em contraste com a figura de seu pai jovem e atlético, com quem compartilha as páginas dos livros, a imagética que criamos de Pedro II apresenta-se de muitas formas superficial, na medida em que desconsideramos uma série de características pertinentes à sua personalidade que, por sua vez, ajudaram a moldar a política e a sociedade brasileiras da segunda metade do século XIX. Por trás dele existia todo um universo ritualístico pautado na tradição europeia e que fora transplantado para cá com a vinda da família real portuguesa em 1808. Mas em terras tropicais, esses mesmos costumes acabariam por sofrer uma série de alterações em decorrência da geografia e dos modos da colônia. Com base nessa premissa, eis que Lília Moritz Schwarcz constrói uma narrativa no qual mistura biografia e ensaio interpretativo em que apresenta a monarquia brasileira sobre um viés completamente inusitado, até então.

Lília Moritz Schwarcz, autora de "As Barbas do Imperador".

Lília Moritz Schwarcz, autora de “As Barbas do Imperador”.

Singular também é o título escolhido pela autora para batizar sua obra: As Barbas do Imperador (1998), fazendo assim uma referência direta à Mendes Fradique (mencionado no prólogo do livro), quando este afirma que a única coisa que D. Pedro II não fez durante seu longo reinado fora a barba. Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), as contribuições de Schwarcz para o campo da História são relevantes. Em sua bibliografia podemos encontrar obras tratando sobre diversidade racial, como Retrato em Branco e Negro (1987) e O Espetáculo das Raças (1993). Mais recentemente publicara uma obra em quadrinhos sobre a vinda da corte portuguesa para o Brasil, D. João Carioca, que fora adapta em série animada para a TV. Entretanto, é em As Barbas do Imperador (vencedor do Premio Jabuti de livro do ano – 1999) que a autora alia seu conhecimento antropológico à metodologia da História para dissertar acerca da caracterização de D. Pedro II e da configuração do Império do Brasil, de forma a enquadrá-lo no espaço internacional não como mero espectador dos acontecimentos, mas também como agente. Aqui, podemos observar como a questão da imagética está fortemente atrelada ao simbolismo que as pessoas fazem de uma determinada instituição e daquele(s) que a representa(m).

A obra é composta de 19 capítulos, nos quais Lília Moritz Schwarcz estabelece uma verdadeira discussão com os estudos de escritores cujos livros lhe serviram como referência. Entre eles, uns dos nomes que mais se destacam são o de José Murilo de Carvalho, historiador brasileiro, autor de A Formação das Almas, que trata justamente da transição do Império para a República, e o de Sérgio Buarque de Holanda, principalmente no tocante à configuração social no período em questão. As conclusões destes serão longamente debatidas a partir do capítulo 6. Antes dele, a autora aborda de forma breve a vida de D. Pedro II até seu matrimônio com Tereza Cristina, princesa napolitana por quem, acredita-se, o imperador só se afeiçoara um ano depois de casado. O livro se inicia com um interessante conto indígena da tribo Jê-Timbara, que fala das aventuras de Aukê, um menino que podia metamorfosear-se no que quisesse, e que após ser assassinado pelo tio, se transforma em Pedro de Alcântara, o pai dos brancos. O interessante que essa passagem mostra para o leitor é de como a imagem do imperador era interpretada pelas diversas etnias que conviviam no território nacional. Em meio a realezas africanas, festas populares, nobres e índios, observa-se uma verdadeira tropicalização da tradição monárquica dos Bragança, o que dotava a corte de uma classificação única, se comparada com os diversos reinos da Europa.

Em fato, o mito de Aukê vai estar presente durante toda a análise de Schwartz, juntamente com o conto de Hans Christian Andersen sobre um soberano que, acreditando portar o traje mais lindo do mundo, visível apenas para os de “mente esclarecida”, se surpreende com um garoto que grita para todos que o rei estava nu, passando então a ser alvo de todos os risos dos súditos. Essa historieta, já bastante conhecida, serve para a autora na medida em que ela tenta descamar a figura de D. Pedro II, juntamente com a da sociedade que ele representava. Os primeiros capítulos da obra dão conta do cenário político da época: desde a independência, passando pelas turbulências do período regencial, até o golpe da maioridade, quando o jovem de 14 anos fora proclamado imperador. Aqui, temos o mais belo exemplo do que autora define como a tropicalização dos ritos monárquicos: a realização do cerimonial europeu de coroação, datado de séculos de tradição, só que incrementado de elementos da cultura nacional, inclusive nos próprios trajes do soberano, como a murça de coloridas penas de galo-da-serra (depois trocadas por uma de papo de tucano) que ele usava sobre as vestes da realeza. Isso, por sua vez, é uma clara alusão à presença indígena na história do país, com seus assessórios e cores, agora referenciados pelo imperador e sua família em rituais da corte e festas.

D. Pedro II.

D. Pedro II.

Aliado à excelente interpretação dos fatos dada por Schwarcz se faz notável um grande apelo ao recurso da iconografia. Ao longo de todo o texto, o leitor é maravilhado por cenas e retratos dos principais agentes e acontecimentos discutidos pela obra. Nesse aspecto, o que mais chama a atenção é a própria representação de Pedro II, um verdadeiro menino, até que em seus quadros passam a contar a presença de um tufo de pelo abaixo de seu queixo que, com tempo, tornar-se-ia maior, passando então a ser um elemento intrínseco à sua caracterização. “Se o Imperador Já tem barbas… É hora de casar”, diz a autora no quinto capítulo, ao afirmar que a partir do momento em que era apresentado como um homem de barbas, casado e pai, o imperador se distancia do estereótipo de órfão da nação, para representar o papel de pai de seu povo, verdadeiro mecenas das artes de das ciências. Após um longo discurso bem ilustrativo de como se configurava a vida na corte carioca, utilizando para isso de fontes de jornais e obras literárias, é no capítulo seguinte que observamos como D. Pedro exerceu esse papel de financiador da erudição no país, ao criar e/ou estimular instituições como o IHGB, a Academia Imperial de Belas Artes e o Colégio Pedro II. Nesse espaço, se sobressai a presença do nativo, cuja personalidade fora adotada como símbolo da nação por uma série de romancistas, como José de Alencar.

As imagens produzidas do Imperador e de seus domínios durante as décadas de 1850 e 1860 dão conta da utilização do índio como face característica da nação, ao mostrar Pedro II ao lado de caciques, ou ele mesmo vestido como um. Já o capítulo 8, escrito em co-autoria com Angela Marques da Costa, da conta do perfil da nobreza brasileira, tão distante da configuração europeia. Aqui podemos também aplicar o conceito da autora da tropicalização dos costumes, quando animais silvestres e ramos de café e tabaco passaram a substituir leões e figuras míticas nos brasões das famílias nobres. Não obstante, Lília Moritz Schwarcz atenta para o fato de que essa nobreza brasileira diferia da europeia na medida em que seu título não era hereditário, mas apenas uma mercê concedida pela coroa para um indivíduo que prestara serviços valiosos ao Estado. Adiante, no capítulo As residências de Pedro (também escrito em co-autoria com Costa) notamo-los como o soberano, a exemplo do Luís XVI, fizera de suas moradas um templo personificado da instituição monárquica da qual era o representante. A autora estabelece então uma comparação entre a Versalhes do Rei Sol, e a Petrópolis do Imperador brasileiro, que se tornara sua habitação preferida, ao mesmo tempo em que o distanciava dos súditos no Rio de Janeiro.

Contudo, é no capítulo 10 (escrito em coautoria com Valéria Mendonça Machado), que obtemos um valioso e divertido relato das festas ocorridas em todo o país, em que elementos da tradição africana são acrescentados aos dias Santos Católicos. Para discorrer sobre essas celebrações, a autora se vale dos relatos dos principais cronistas que pisaram em solo brasileiro durante o Império, como o príncipe Maximiliano, os naturalistas Spix e Martius, Kidder, entre outros. Em suas respectivas crônicas, na maioria dos casos, percebe-se certo desprezo pelas tradições dos cativos, assim como um sentimento de surpresa diante da alegria com que os dias festivos eram saudados. Porém, em meio a congadas, entrudos, Imperadores do Divino e Rainhas Ginga, o Estado passava por um cenário conturbado no âmbito externo: a guerra do Paraguai. Segundo Schwarcz, no momento em que Pedro II abandona os trajes da realeza por roupas militares e se direciona para o sul a fim de participar do embate, se evidencia o ápice de sua gestão e popularidade. Entretanto, as dívidas contraídas pelo país, aliado ao abandono cada vez mais crescente do Imperador do cerimonial da corte (tão estimado pelos súditos), acabaria por anunciar o fim da instituição monárquica no Brasil.

As Barbas do Imperador - Lília M. Schwarcz

As Barbas do Imperador – Lília M. Schwarcz

Todavia, é notável também, por parte de Schwarcz, um diálogo que ela mantem com as obras literárias que eram produzidas na época, na medida em que elas ilustram os impasses por que a sociedade passava até então. Por exemplo, ao descrever a guerra do Paraguai, ela se vale de passagens da obra Iaiá Garcia de Machado de Assis, assim como Esaú e Jacó do mesmo autor, para falar do colapso do Império após a abolição da escravidão em 1889. “Com efeito” (termo abusivamente utilizado pela escritora para iniciar parágrafos), a autora tem pouco a falar sobre a participação da maçonaria nos acontecimentos da época, o que a meu ver, é o único ponto desfavorável desta brilhante obra. Após ter feito viagens pelo mundo em que pretendia exibir uma imagem de monarca cidadão, com a República, D. Pedro finalmente é mandado para a pátria da qual descendia, mas não era filho. O Brasil era sua casa, e como tal sua figura permaneceria presente no imaginário popular, enraizada na cultura de um povo que jamais conseguirá se livrar de seu passado monárquico. Por fim, é perfeitamente plausível dizer que Lília Moritz Schwarcz, assim como no conto de Hans Christian Andersen, conseguiu apresentar para o leitor a face de um rei nu, mas nem tanto.

Renato Drummond Tapioca Neto

Graduando em História – UESC

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