Os erros em perspectiva: filme Elizabeth (1998)

Dirigido por Shekhar Kapur, Elizabeth, filme de 1998, é considerado pela crítica especializada como um dos maiores épicos já feitos sobre a vida da monarca cuja história é o tema da produção. Vencedor do Globo de Ouro de melhor atriz para Cate Blanchett e indicado a outras seis categorias do Oscar, o longa aborda os primeiros anos do reinado da filha de Henrique VIII com Ana Bolena e sua luta para permanecer no trono inglês. Isso, por sua vez, o dota de um caráter singular, dado o fato de que na maioria dos filmes sobre a vida de Elizabeth I, nota-se certa preferência em se reconstruir a fase mais notória de sua gestão, ou seja, da década de 1580 até sua morte em 1603. Não obstante, o roteiro cria asas à imaginação do público sobre o possível relacionamento entre a jovem rainha e Lorde Robert Dudley, estabelecendo também um parâmetro entre as ameaças de invasão impostas pela Espanha e França e as tramoias de Thomas Howard (IV Duque de Norfolk), para usurpar a coroa e assassinar sua prima. Entretanto, como de costume em diversos filmes que abordam acontecimentos da História, Elizabeth não escapa à recíproca e transparece ao grande público alguns erros que merecem ser aqui levados em consideração.

Christopher Eccleston como Thomas Howard, 4º Duque de Norfolk.

Christopher Eccleston como Thomas Howard, 4º Duque de Norfolk.

O primeiro deles consiste na cronologia de sucessão ao título de Duque de Norfolk pelos membros da família Howard. Por exemplo, na cena em que a Rainha Mary I convoca uma sessão particular na sua câmara para saber notícias acerca da rebelião contra a autoridade real, ela demonstra seus agradecimentos a um jovem pelo qual chama de Norfolk. Porém, a figura do Duque ali presente (interpretado com destreza por Christopher Eccleston) deveria ser a de um homem com cerca de 80 anos de idade, uma vez  que foi o tio de Ana Bolena quem liderou a repressão da coroa. O que se percebe nesse momento, então, é uma fusão de personagens, pois o jovem presente no recinto possivelmente era o neto de Thomas, que ascendeu ao título pouco depois da morte de seu avô. Em vias fatídicas, foi o III Duque de Norfolk, e não o seu descendente, quem providenciou a prisão de Elizabeth sob a acusação de que ela estaria aliada com Thomas Wyatt (o Jovem) no processo de manifesto contra a Rainha Mary I, vivida em sua depressão e melancolia por Kathy Burke.

Adiante, o espectador tem um vislumbre da romântica vida de Elizabeth em Hatfield com seu amado Robin (que, diga-se de passagem, foi uma perfeita representação de Joseph Fiennes), até deparar-se com uma jovem aia correndo pelos campos para alertar à sua senhora de que esta fora acusada de ser a instigadora da guerra civil e que uma comitiva, liderada pelo Conde de Sussex, estava a caminho com uma ordem de prisão. A mulher em questão se trata de Catherine Champernowne (Emily Mortimer), mais conhecida pelo seu nome de casada, Kat Ashley, que cuidou da princesa Elizabeth desde 1537 e tornar-se-ia uma de suas melhores amigas até 1565, ano de sua morte. Porém, a “Kat” do filme Elizabeth apresenta-se muito mais jovem do que deveria ser, como se fosse da mesma idade que sua suserana, desconsiderando o fato de que a verdadeira Catherine Champernowne era no mínimo 20 anos mais velha que ela.

Cena da Coroação de Elizabeth I

Cena da Coroação de Elizabeth I (Cate Blanchett).

Feito essas considerações iniciais  partamos então para a análise de algumas passagens alegóricas do filme, das quais a que mais chama atenção é a coroação de Elizabeth, feita de forma a referenciar o famoso quadro em que a nova Rainha traja um vestido amarelo ouro, ostentando em sua cabeça a coroa e em suas mãos os dois cetros da soberana. Foi simplesmente perfeita! Era como se a Elizabeth da pintura saltasse para o filme e mostrasse ao público toda a força de sua majestade. Incrível também foi a cena que se seguiu após a cerimônia, com o tradicional banquete, onde podemos observar uma imagem pitoresca do período Tudor, com suas danças e músicas características. Porém, na sequência, um dado impreciso salta aos olhos, quando o embaixador francês Monsieur de Foix (Eric Cantona) notifica a Elizabeth a proposta de matrimônio oferecida pelo Duque D’Anjou, enquanto que, em realidade, o primeiro pretendente da rainha fora o Arquiduque Carlos da Áustria. A proposta de casamento com o referido Duque francês só se tronara viável quando as relações da Inglaterra com a casa de Habsburgo se deterioraram a partir de 1568.

Em cena o Glorioso Banquete da Coroação de Elizabeth I (Cate Blanchett).

Em cena o Glorioso Banquete da Coroação de Elizabeth I (Cate Blanchett).

Sendo assim, nota-se um sério descompromisso com a cronologia histórica por conta do roteirista Michael Hirst, pois ele lança mão de uma série de fatos que se sucederam bem depois do recorte temporal encenado: o filme se inicia em 1554, como é evidenciado no começo da trama, mas a coroação de Elizabeth só ocorreu em janeiro de 1559. Isso, por sua vez, revela a forma como as cenas avançam de forma rápida, com pouco ou quase nenhum esclarecimento. Quanto ao relacionamento amoroso da nova Rainha com seu amigo de infância Robert Dudley, notamo-los outro embaraço, visto que nem os principais biógrafos da soberana chegaram a uma conclusão sobre isso. Não é impossível que os dois tenham trocado alguns beijos e carícias, mas até aí nunca se poderá saber se houve de fato a cópula carnal. O mais provável é que ambos mantinham uma relação de amor cortês, bastante comum àquele período.

No tocante ao atrito entre Elizabeth e Marie de Guise (Fanny Ardant), o filme acentua erroneamente que a mãe de Mary Stuart só iria cessar a investida escocesa contra a Inglaterra se a Rainha aceitasse o cortejo de seu sobrinho, o Duque D’Anjou, (interpretado por Vincent Cassel, conhecido atualmente pelo seu papel em Cisne Negro). Marie morreu em 1560. Elizabeth e Henry D’Anjou conhecer-se-iam apenas em 1568 (a rainha ainda aceitaria a do irmão do duque, Francisco D’ Anjou, em 1572). Também não há como provar se ela ou Francis Walsinghan estariam envolvidos no provável assassinato da viúva de Jaime V, como o filme nos induz a acreditar. Na pele do agente da rainha, temos o popular Geoffrey Rush, perfeito para o papel de personagem maquiavélico e de mente aguçada. Walsinghan havia voltado da França quando da elevação de Elizabeth e fora nomeado por Lorde William Cecil para integrar a Câmara dos Comuns, representando a cidade de Banbury. Só com o passar dos anos é que viria a se tornar um dos principais conselheiros da monarca.

Joseph Fiennes como Robert Dudley.

Joseph Fiennes como Robert Dudley.

Já sobre William Cecil (Richard Attenborough), consagrado primeiro Barão de Burghley, não é verossímil o fato de que Elizabeth o afastou do conselho para tomar suas próprias decisões políticas. Muito pelo contrário! Até a Morte de Burghley, em 1598, ele havia sido nomeado duas vezes Secretário de Estado, e Tesoureiro em 1572. Também é infundada a tese de que Cecil teria informado a Elizabeth do casamento de Robert com Amy Dudley, pois sempre foi do conhecimento desta que seu favorito era comprometido pelos sagrados laços do matrimônio, e conviveu com isso desde então. O início das hostilidades entre os dois deveu-se à suspeita de que Lorde Robert teria assassinado sua mulher para ficar com Elizabeth. Até hoje isso é um grande mistério para os historiadores. O que se sabe é que Amy Dudley sofria de fraqueza nos ossos e que ao cair de uma escada, partiu o pescoço. Além desses, outros erros se tornam enfadonhos: como a conspiração de Robert com o embaixador espanhol para influenciar a Rainha a se casar com Felipe II, rei da Espanha; ou Elizabeth ter se consagrado virgem após cortar os cabelos e decidir que não mais se casaria.

Geoffrey Rush como Francis Walsingham.

Geoffrey Rush como Francis Walsingham.

Antes de encerrar a presente análise, gostaria apenas de fazer uma rápida referência sobre a veracidade acerca das mortes do Duque de Norfolk e dos condes de Arundel e Sussex: apenas Thomas Howard foi decapitado. Sussex permaneceu até o fim com um leal servidor da rainha e Arundel foi encarcerado na torre, e morrendo na mesma como prisioneiro. Diante do que foi exposto, podemos então concluir que filmes que tratam de temas da História nem sempre têm um compromisso com os fatos. Muitas vezes eles são pautados nas indagações do diretor e/ou roteirista frente aos acontecimentos do passado de acordo com sua lógica individual do presente. É o caso de Elizabeth, que para alguns foi responsável pela divulgação de uma história fictícia, que tende a romper com os conceitos de moralidade empregados na Inglaterra Tudoriana. Por outro lado, confere com a inexperiência da rainha nos anos iniciais de sua ascensão ao trono. Sendo assim, há que se repensar a trama na tentativa de enxergar novos significados que expliquem a inserção de demasiados equívocos. Por exemplo: poder-se-ia dizer que Shekhar Kapur quis mostrar, através da vida de Elizabeth, que a conduta de recato pregada pelos padrões conservadores cristãos do período também eram deixados de lado de acordo com os interesses da pessoa. Esse, por si só, já é um ponto chave para uma boa discussão!

Renato Drummond Tapioca Neto

Graduando em História – UESC

Confira o Trailer de Elizabeth (1998):

Texto editado a partir de : A verdade por trás do erro: Filme Elizabeth [1998]

11 comentários sobre “Os erros em perspectiva: filme Elizabeth (1998)

  1. Belo artigo. Eu amo esse filme e, claro, considero os equívocos históricos. Apesar deles, creio que o filme retrata bem a atmosfera da época, Especialmente a disputa política usando a questão religiosa como motivo ou justificativa. Isso é bem daquele período. Obrigada pelas informações.

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    • Considerando que o segundo filme foi lançado quase dez anos depois do primeiro, então eu acho que ainda temos muita probabilidade de ver um terceiro filme nas telas 😉

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  2. Renato,
    Não concordo que filmes históricos possam divergir tanto da história. Quando se retrata uma pessoa real deveriam ser mais cuidadosos com as pesquisas, afinal acho que história também se aprende em filmes e livros. O segundo filme também comete equívocos terríveis, sugerir que Elizabeth que era tão orgulhosa teve um caso com seu pirata é simplesmente ridículo!
    Penso que os dois filmes salvam pela beleza da reconstrução histórica e pelo desempenho dos atores.
    Abraços e parabéns pela análise do filme. Infelizmente este não é o único.

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    • Concordo com sua opinião, Poliana. Infelizmente a indústria cinematográfica está mais preocupada em vender um produto do que em se manter fiel aos fatos. Querem atingir as massas com enredos fantasiosos e ao mesmo tempo as fazem acreditar que tudo aquilo é verídico. Por isso a minha preocupação em resenhar tais filmes, para mostrar às pessoas que a história não é da forma como elas aprendem nas telas do cinema. Abraços!

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  3. Obrigada pela resenha Renato. 😀 Acabei de assistir ao filme. Enquanto eu o via, ia pensando: “será que tudo isso é verdade, mesmo?” kkkkk Aí procurei informações. Bom…eu imagino que praticamente todos os filmes acabam tendo que mentir um pouquinho. Mesmo que seja uma coisa mínima. Também concordo com a sua opinião e a da Poliana. Infelizmente eles não são fiéis à história, pois como você mesmo disse: “estão mais preocupados em vender um produto”. Todavia, o filme foi muito bom. Eu o achei meio violento, pois não gosto de ver cenas de tortura, espancamento…porém, ele foi uma obra bem realizada.

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  4. William Cécil nasceu no ano de 1520, portanto era 13 anos mais velho que Elizabeth( que nasceu em 1533) no filme ele é mostrado como um ancião, o que não é verdade.

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  5. Boa análise. Contudo falha ao não avaliar a mídia em que se apresenta. O cinema jamais terá o compromisso com a história. Seu compromisso é com o espectador, por isso as adaptações cinematográficas de obras históricas ou fictícias, para darem certo no telão, precisam ser reescritas de forma a criar empatia com quem assiste, promovendo um entendimento intuitivo sobre a trama. Exibo este filme para meus alunos do 8º ano enquanto trabalho com o absolutismo monárquico. Sempre falo sobre os erros que na verdade são intencionais para que a narrativa tivesse um aspecto mais encorpado.

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