Segredo de 400 anos: análise dos Anais do reinado de Elizabeth l revela fatos desconhecidos!

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

A primeira Era Elisabetana (fase que corresponde ao reinado da rainha Elizabeth I, entre os anos de 1558 e 1603), coincidiu com um dos períodos mais prolíficos da história da Inglaterra. As artes, com o teatro e a pintura, deram um poderoso impulso rumo à modernização do país; a Igreja Anglicana se assentou em bases mais sólidas; o reino começou a se expandir para além-mar, em direção à América do Norte. Toda essa época de avanços tinha na figura da soberana um importante centro aglutinador. Elizabeth passou para a história com epítetos como “a rainha virgem” e “gloriana”. Seu reinado já foi chamado de “Idade Dourada”. Uma importante fonte para a construção desse imaginário mítico consiste nas crônicas oficiais, escritas por William Camden e publicadas em 1615, durante o reinado de James VI da Escócia e I da Inglaterra. Contudo, pesquisas recentes feitas sobre o manuscrito original comprovaram que boa parte do texto foi adulterada para omitir qualquer tipo de passagem que pudesse desprestigiar a monarca e seu sucessor aos olhos da posteridade.

Segundo o historiador Hugh Trevor-Roper, “é graças a Camden que atribuímos à rainha Elizabeth uma política consistente de via mídia” (1971). Além disso, o cronista seria o responsável por construir a imagem de Elizabeth como uma governante decidida e de seu governo como um período estável, “em vez de uma série inconsequente de conflitos não resolvidos e indecisões paralisadas”. No texto dos seus Anais, Camden chegou a reconhecer sua parcialidade durante a escrita e revisão da versão oficial: “Coisas duvidosas eu interpretei favoravelmente; coisas secretas e abstratas que eu não me orgulho”. Recentemente, as análises feitas com o manuscrito do cronista revelam que muitas passagens dos Anais (até pouco tempo tratado como uma das principais fontes do período elisabetano) foram adulteradas pelo autor, possivelmente para agradar ao rei James VI e I.

Uma folha de luz usada para revelar texto oculto em um manuscrito dos Anais de William Camden. Novas pesquisas sugerem que o autor refez sua biografia de Elizabeth I para ganhar o favor de seu sucessor, Jaime VI da Escócia e I da Inglaterra. © O Conselho da Biblioteca Britânica

Mantido na Biblioteca Britânica, o manuscrito original possui dezenas de páginas com linhas que foram coladas e/ou riscadas, tornando a sua leitura praticamente impossível a olho nu. Para desvendar esse enigma, a pesquisadora Helena Rutkowska, estudante de Pós-Graduação da Universidade de Oxford, liderou uma série de análises sobre o papel. Usando tecnologia de transmissão de luz, ela conseguiu revelar frases escondidas por baixo das rasuras. Uma delas, por exemplo, se refere à anedota de que Elizabeth teria nomeado James como seu sucessor, ainda em seu leito de morte. Contudo, a filha de Henrique VIII e Ana Bolena se negou até o último suspiro a reconhecê-lo como tal, bem como a qualquer outro herdeiro presuntivo, para evitar tentativas de golpes (como as que envolveram no passado a mãe de James, Mary Stuart). Como a soberana faleceu sem filhos, o trono acabou passando para o rei dos Escoceses, na qualidade de seu parente mais próximo, além de ser aquele que tinha a melhor reivindicação.

Na opinião de Julian Harrison, curador-chefe de manuscritos medievais históricos e literários da Biblioteca Britânica, William Camden “presumivelmente incluiu [a história] para apaziguar James, de modo que sua sucessão parecesse mais predeterminada do que realmente tinha sido”. Ainda segundo Harrison, em depoimento ao Guardian: “Elizabeth estava doente demais para falar em suas últimas horas, e nenhuma outra evidência histórica aponta para que essa cena do leito de morte seja verdadeira”. O cronista também adulterou o episódio sobre Valentim Thomas, um suposto ladrão de cavalos que alegara ter sido pago pelo rei James para assassinar a rainha Elizabeth, em 1598. Para a historiadora Elizabeth Tunstall, da Universidade de Adelaide (na Austrália), a soberana “desejava que a situação fosse administrada discretamente”, uma vez que a divulgação de tais rumores “prejudicaria a reputação de seu provável sucessor”.

Abertura de uma das páginas do manuscrito dos Anais © de Camden: The British Library Board

Entretanto, James VI queria que sua madrinha, a rainha da Inglaterra, refutasse publicamente a acusação – um pedido que Elizabeth decididamente recusou. Embora Camden, inicialmente, tenha mencionado a confissão completa de Thomas, ele suavizou sua escrita durante a revisão do texto, afirmando que o ladrão teria apenas “acusado” o rei dos Escoceses de nutrir uma espécie de “afeição ruim pela rainha”. De acordo com o comunicado oficial, “James nunca havia conspirado contra Elizabeth, mas era altamente sensível a qualquer calúnia contra ele, tendo enviado outros escritores para a prisão por ofendê-lo”. Os Anais, na versão que está disponível atualmente, foram escritos, a princípio, por comissão de William Cecil, Lord Burghley, um dos principais conselheiros da rainha Elizabeth I. Cecil deu a Camden acesso exclusivo a registros parlamentares, além do testemunho de nobres que conviveram com a monarca.

Todavia, apesar de ser apontando como único autor da obra, é possível que Camden tenha contado com a ajuda de outros escritores, especialmente de Sir Robert Cotton, fundador da coleção Cotton. Com a morte de William Cecil, em 1598, e da rainha cinco anos depois, a conclusão da obra foi patrocinada pelo próprio rei James. Os três primeiros volumes dos Anais foram publicados em latim, no ano de 1615, enquanto o último tomo foi publicado postumamente, depois do falecimento do autor, em 1623. Dessa forma, o texto precisou sofrer uma drástica modificação, de forma a se adequar ao desejo do novo soberano. Conforme disse Rutkowska:

Ele não só teve que evitar escrever qualquer coisa arriscada sobre James para escapar da punição, mas também seguiu esse protocolo para nomes como o rei Felipe, o papa Pio e John Puckering para evitar ser rotulado como um historiador tendencioso. Não é de admirar, portanto, que na parte final do prefácio os Anais, Camden tenha escrito que desejava ser lembrado apenas [como] “um escritor menor nos grandes assuntos da história”.

Sendo assim, apaziguar o novo rei não era a única motivação de Camden para fazer revisões substanciais nos Anais. Conforme Rutkowska explicou durante uma apresentação organizada pela Sociedade de Antiquários de Londres, no ano de 2023, o autor também queria evitar cair no desafeto dos censores e de seus colegas na comunidade acadêmica. Dessa forma, Camden removeu uma linha sugerindo que o ex-cunhado de Elizabeth I (que havia se tornado seu inimigo), Felipe II de Espanha, não tinha “nenhuma habilidade imperial”, bem como uma passagem atribuindo a morte do rei à ftiríase (doença vista como um castigo divino). Não obstante, em um trecho que dava conta da excomunhão de Elizabeth, em 1570, o autor removeu a parte que descrevia tal episódio como um ato de censura religiosa do papa Pio V, que teria provocado uma “guerra espiritual”.

Elizabeth I (esquerda) e Jaime VI da Escócia e I da Inglaterra (direita).

Conforme as pesquisas com tecnologia de luz sobre as páginas do manuscrito dos Anais avança, resta-nos saber se suas descobertas podem reescrever a narrativa do período elisabetano. Mas, como a própria Rutkowska disse a Neil Connery, da ITV News: “Na verdade, vemos Camden às vezes sendo ainda mais elogioso para Elizabeth e depois se livrando dessa informação para fazer James parecer melhor, então eu realmente acho que isso mostra que Elizabeth merecia esse legado incrível que ela teve”. Por fim, a historiadora acrescentou: “Em um mundo de censura punitiva e escrutínio intelectual, Camden sabia que seus Anais não poderiam ser um relato objetivo do reinado de Elizabeth, nem deveríamos reivindicá-lo como tal”.

Fonte:

SOLLY, Meilan. Hidden for 400 Years, Censored Pages Reveal New Insights Into Elizabeth I’s Reign. 2023 – Acesso em 15 de abril de 2024.

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