Por: Renato Drummond Tapioca Neto
A rainha Mary foi uma das figuras mais importantes da família real britânica nos últimos 100 anos! Ela não só foi uma das fundadoras da Dinastia de Windsor, que reina até os dias de hoje, como ditou parâmetros de comportamento e delineou o tipo de atividades às quais as mulheres da realeza deveriam se dedicar. Muito antes da princesa Diana, a monarca entendeu que o regime só poderia sobreviver se estivesse assentado na vontade popular. Por isso, ao longo do reinado do seu marido, George V, ela se dedicou ao máximo para estreitar as conexões do Palácio com seus súditos. Durante os anos da Primeira Guerra, por exemplo, ela podia ser vista visitando soldados feridos em hospitais de campanha, confortando as famílias das vítimas do conflito e ate tricotando meias e agasalhos para indivíduos em situação de vulnerabilidade. Porém, seu legado vai muito além da criação de um novo modelo de monarquia. Mary de Teck também foi responsável por identificar, catalogar e aumentar consideravelmente a Coleção Real, que hoje é uma das maiores coleções privadas do mundo. Ela deixou para sua neta, a rainha Elizabeth II, mais de 2000 novos objetos catalogados, além de uma vasta quantidade de joias.

Fotografia do perfil da rainha Mary de Teck, por volta de 120. Colorização de @empress-alexandra, no Tumblr.
A princesa Mary de Teck entrou para a família real no dia 6 de julho de 1893, após seu casamento com o príncipe George, duque de York. Antes disso, ela esteve noiva do irmão mais velho de seu marido, o príncipe Albert Victor, duque de Clarence e Avondale, que morreu de influenza no início de 1892. Como a rainha Vitória havia simpatizado bastante com a filha de sua prima, Mary Adelaide de Cambridge, duquesa de Teck, ela então tratou de arranjar o casamento da jovem com o segundo na linha de sucessão ao trono. Embora aparentados com a monarca reinante, os Teck tinham na corte o tratamento de Alteza Sereníssima e não de Alteza Real, o que poderia ser um empecilho para o casamento da princesa May (como era chamada) com George. Isso porque seu avô paterno, Alexandre de Württemberg, havia se casado com uma nobre de status inferior, a condessa Claudine Rhédey von Kis-Rhéde. No costume da aristocracia nos principados alemães, isso se configurava numa união morganática, o que significava que o filho do casal, Francis, futuro duque de Teck, não herdaria o status da família de seu pai. Assim, Mary de Teck nasceu no dia 26 de maio de 1867, no Palácio de Kensington, onde seus pais moravam.
Sem ter como sustentar a própria família, Francis vivia do favor da rainha Vitória. Como não podia bancar a manutenção de apartamentos em um Palácio, os Teck se mudaram para a White Lodge, em Richmond Park. Por anos, também viveram em “short streets”, ou ruas do dinheiro curto, devido às suas parcas condições financeiras. Assim, May e seus três irmãos menores foram educados em casa, sendo fluentes em inglês, francês e alemão. Entre os componentes curriculares que mais chamavam a atenção da aluna, estavam História, Geografia e Arte. A princesa pôde exercitar seu conhecimento nessas áreas quando, em 1883, sua família teve que partir para a Itália. De acordo com as más línguas, fugiam de seus credores. Vivendo principalmente em Florença, Mary adicionou o italiano aos idiomas que já dominava e passava seu tempo visitando museus e galerias, absorvendo assim toda a riqueza cultural da cidade. Ao retornar para a Inglaterra em 1885, aos 18 anos, havia se transformado em uma moça bela, mas, principalmente, culta. Esses conhecimentos seriam de suma importância para o alto papel que um dia ela viria a desempenhar na monarquia britânica.
Durante a temporada de 1886, Mary debutou na corte, chamando a atenção do príncipe Albert Victor. Na época, ele ainda estava indeciso sobre seus sentimentos acerca da prima, a princesa Alix de Hesse-Darmstad. Como ela afirmou que não sentia nada por ele além de amizade, Albert resolveu fazer a corte à princesa May. Como o casamento do herdeiro do trono dependia da aprovação do monarca, segundo a Lei de Casamentos Reais, a rainha Vitória aprovou o noivado do neto, a despeito do status principesco inferior da noiva. O compromisso foi oficialmente anunciado em 3 de dezembro de 1891. Seis semanas depois, o príncipe havia falecido. Porém, May se encaixava tão bem para o papel de consorte real, que a rainha incentivou seu outro neto, George, a lhe propor casamento. Embora seja certo que o casal não estivesse apaixonado, logo surgiu entre eles uma amizade, que no futuro poderiam chamar de amor. Dessa união, nasceram seis filhos; David (futuro rei Edward VIII), Bertie (futuro rei George VI), Mary, Henry, George e John. Na qualidade de duquesa de York, a princesa Mary praticava muitos trabalhados filantrópicos, sendo patrona da guilda das costureiras de Londres.

Mary de Teck desenvolveu um primoroso trabalho de identificação e de catalogação das peças da Coleção Real.
Em 22 de maio de 1901, a rainha Vitória faleceu em Osborne House, na Ilha de Wight. Seu herdeiro direto, Bertie, ascendeu ao trono como Edward VII. No dia 9 de novembro daquele mesmo ano, quando o novo monarca completou 60 anos, ele fez de seu filho George e de sua nora, Mary, os novos príncipe e princesa de Gales. A partir de então, o casal teria uma agenda de compromissos lotada, representando a coroa em diversos países, devido ao estado de saúde crítico do rei. Como princesa de Gales, Mary também demonstrou preocupação com o estado deplorável da Coleção Real, com itens mal catalogados ou perdidos. Ao longo das próximas décadas, ela se dedicaria ao “meu único grande hobby” com bastante seriedade. Tendo acesso livre aos arquivos reais da torre redonda do Castelo de Windsor, Mary tratou de localizar todos os objetos que, em tempos passados, haviam sido emprestados para outras famílias nobres e nunca devolvidos. Em seguida, escrevia cartas, solicitando a devolução dos itens para a Coleção Real. Foi uma tarefa bastante meticulosa, possibilitada pela ajuda dos arquivistas do Palácio e pelos seus preciosos conhecimentos da princesa sobre a história do Reino Unido.
“Oh! Querido, Oh! Querido, se eu pudesse encontrar a história de todas essas coisas, quão interessante isso seria. Mas, ai de mim, não há nenhum inventário, nada”, escreveu Mary, princesa de Gales, desesperada, após conseguir um grupo de candelabros com o monograma do rei George IV. Sem se deixar abalar, ela partiu então para a pesquisa. Mary possuía um profundo conhecimento dos arquivos reais, então procurar por evidências acerca do paradeiro de determinadas peças se tornou para ela uma verdadeira caça ao tesouro. Ela podia passar horas no Castelo, em busca de objetos que remontavam ao período Plantageneta, Tudor e Stuart. Quando estava ocupada demais com algum evento da Coroa, ela então delegava a tarefa de catalogação das peças encontradas aos seus ajudantes, Lionel Cust e, mais tarde, C.S. Collins Baker. O desejo de manter a ordem em meio ao caos seria algo que ela passaria adiante para a rainha Elizabeth II. Em alguns casos, seu “hobby” podia ser extremamente exaustivo, conforme podemos entender a partir de uma carta de 1912, na qual ela descreve, sem fôlego, “a retirada de móveis antigos e coisas bonitas dos depósitos do Palácio, nas quais ninguém, exceto os inspetores de móveis, havia tocado durante anos!!!”.
Em 6 de maio de 1910, com a morte do rei Edward VII, Mary e George ascendem como novos rei e rainha consorte do Reino Unido e imperadores da Índia. Isso fez de Mary a primeira soberana britânica nascida na Inglaterra, desde Catarina Parr, sexta esposa do rei Henrique VIII, em 1543. Em meio à campanha de austeridade imposta nos anos da Primeira Guerra, a nova rainha arranjava tempo para continuar catalogando a coleção real. “É realmente maravilhoso o que conseguimos colecionar e reunir desde que nos casamos, uma coleção bastante honrosa de objetos de família […] sem gastar muito dinheiro com isso”, escreveu ela para seu marido. Ao organizar e aumentar a Coleção Real, a monarca conseguiu também jogar luz em partes da história britânica, solidificando assim a imagem da monarquia naqueles anos de conflito militar, especialmente quando a ascendência alemã dos Saxe-Coburgo-Gota era questionada por alguns segmentos populares. Ao mudar o nome da Dinastia para Windsor, em 1917, Mary e George conseguiram imprimir uma nova marca, mais próxima do povo e distante de outras famílias reais do continente, com sua hierarquia rígida e protocolos antiquados. A Família Real ressurgiu assim como uma verdadeira instituição, guardiã da memória nacional.

Retrato da rainha Mary de Teck, cercada por sua coleção. Tela de William Bruce Ellis Ranken.
Por outro lado, os métodos que a rainha Mary lançava mão para acrescentar um item de seu gosto à coleção real eram nenhum pouco ortodoxos. Foi relatado que muitas famílias nobres, quando recebiam o casal de monarcas para alguma visita, escondiam suas obras de arte mais valiosas, para que a consorte real não deitasse seus olhos em cima. Qualquer livro, pintura ou objeto que tivesse conexões com a realeza chamava a atenção da monarca. Caso ela demonstrasse interesse na peça, seu proprietário se via obrigado a oferecê-la, apenas para agradá-la. O mesmo acontecia com donos de antiquários. Embora a rainha fosse cliente de muitos deles, logo começou a surgir o boato de que ela tinha o costume de “afanar” determinadas peças de seu interesse. De acordo com a biógrafa Anne Edwards:
Os antiquários londrinos alegavam ter escondido todos os bibelôs e itens preciosos que sabiam que poderiam interessar à rainha quando esperavam que ela visitasse suas instalações, pois a rainha costumava levar o que desejava e ela saia sem pagar. Se, durante uma visita a alguma casa aristocrática, ela avistasse um objeto que outrora pertencera à Família Real, frequentemente solicitava sua devolução, e o atual proprietário não podia fazer outra coisa senão atender.
“Meus Deus, a rainha Mary está vindo para ficar”, diziam os nobres desesperados em suas mansões campestres. Em seguida, eles levavam os itens de arte mais valiosos para o sótão e traziam para baixo objetos com pouco valor. Na opinião da princesa Olga Romanoff, ancestral real: “Ela tinha uma espécie de cleptomania sofisticada, porque ia se hospedar na casa de alguém e, sentada em uma das doze cadeiras Sheraton, dizia: ‘Ah, eu gosto desta cadeira’. E você era obrigado a dar a ela todos as 12”.
Até mesmo artefatos em museus não estavam fora do alcance de sua mãos. “A rainha Mary era predatória, é claro… em sua coleção de artefatos”, disse o historiador John Curtins Perry, autor de A Fuga dos Romanov. Muitos membros da realeza e da nobreza russa, fugindo da Revolução de 1917, encontraram asilo na Inglaterra. Como não tinham dinheiro para se sustentar, além das joias que carregavam consigo, a rainha Mary adquiriu muitas tiaras, braceletes e colares de diamantes. Foi assim que a belíssima Tiara da grã-duquesa Vladimir acabou parando na Coleção Real, assim como as safiras da imperatriz-viúva, Maria Feodorovna. “Seu fascínio insaciável por reorganizar e completar as grandes coleções reais do Palácio de Buckingham e do Castelo de Windsor não oferecia aos diretores de Museus mais proteção contra sua obsessão do que os antiquários”, disse Anne Edwards. “Se ela visse algo que achasse que deveria ser colocado em uma residência real, solicitada um empréstimo permanente da peça”. Apesar de alguns pesquisadores considerarem isso um abuso de poder por parte da monarca, com suas supostas táticas de coação, não existem provas concretas de que Mary de Teck fosse uma ladra inescrupulosa. Anne Edwards e Hugo Vckers apostam na possibilidade de que ela fosse, talvez, cleptomaníaca.

A fachada da casa de bonecas da rainha Mary (fotografia de David Cripps).
Com efeito, para a rainha Mary a beleza residia na história e no patrimônio, não na ousadia e na inovação artística. De acordo com o biógrafo Hugo Vickers: “Ela tinha um olhar apurado e fez um trabalho fabuloso na identificação e marcação da procedência, e também na reunião das coleções certas… Dito isso, ela preferia um retrato moderado de alguma relação com os Hanôver, a uma obra mais empolgante de Cézanne”. As expedições de compras da soberana acabaram por ajudar o comércio local, conforme ressalta Edwards:
Multidões a seguiam; tudo o que ela vestia ou comprava rapidamente tinha tanta demanda que os fabricantes aumentavam a produção. Ela comparecia a todas as feiras industriais e exposições de móveis para o lar, e sempre tiravam fotos quando ela fazia uma seleção simples para o Palácio de Buckingham – ora uma geladeira elétrica, ora tapetes de banho. Imediatamente, uma placa era colocada em um mostruário com o item: ‘Comprado por Sua Majestade, a Rainha”.
“Foi um prazer mostra-lhe meus aposentos no domingo, pois você aprecia tantos detalhes e é digno de todos os belos objetos que são sempre uma alegria para mim”, escreveu a rainha para um colega colecionador, em 1914. “Sempre me parece estranho que possa haver pessoas para quem essas coisas nada significam e não dizem nada. Confesso que sinto pela delas, pois perdem muita coisa na vida”, completou a monarca. Até hoje, é raro não encontrar uma etiqueta na Coleção Real que não tenha sido escrita a mão por Mary de Teck, tamanho era seu amor pela cultura material.
O amor da rainha Mary de Teck pelo colecionismo pode ser melhor expresso na sua Casa de Bonecas, atualmente em exposição no Castelo de Windsor. Montada entre os anos de 1921 e 1924 pelo renomado arquiteto Sir Edwin Lutyens, a estrutura contou com a colaboração de mais de 1.500 artesãos, pintores e fabricantes do início do século XX. “Ela foi construída para durar mais do que todos nós. Para levar ao mundo no futuro esse nosso padrão diferenciado. É uma tentativa séria de expressar nosso tempo e mostrar em pequenas proporções os componentes da nossa época corrente”, disse A.C. Benson no livro The Book of The Queen’s Doll’s House (1924). A casa em miniatura contém os mais diversos cômodos, que reproduzem os ambientes de uma mansão paladiana, como uma sala de visitas, um salão de jantar, uma biblioteca contendo pequenos exemplares escritos pelos maiores nomes da literatura de então, um adega abastecida com minigarrafas de vinho, além de um belíssimo jardim criado por Gertrude Jekyll. Nenhum detalhe foi esquecido, nem mesmo a fiação elétrica que ilumina a casinha, a água corrente que sai da tubulação nas duas temperaturas e os elevadores funcional.

Retrato da Rainha Maria por E.O. Hoppé, tirado em 1924 e reproduzido no ‘Illustrated London News’ em julho de 1929.
Até o final do reinado de seu marido, em 20 de junho de 1936, a rainha Mary havia feito um trabalho impecável de catalogação e identificação das peças da Coleção Real. Ela teria sido “uma das melhores memórias do Império Britânico”, de acordo com o biógrafo James Pope-Hennessy. Em 1924, o fotógrafo Emil Otto Hopé capturou uma imagem da soberana com a mão sobre uma cristaleira, observando sua coleção de jade chinês e outras pedras preciosas. Mais tarde, a fotografia foi divulgada no jornal Ilustraded London News. Oito anos depois, o mesmo periódico publicou uma matéria, na qual se lia que ela “sempre amou a vida doméstica e, ao mesmo tempo em que cultivava as tarefas domésticas, manteve o ideal de ‘beleza do lar’, e até encontrou tempo entre compromissos oficiais para “vários hobbies, especialmente o de colecionar tesouros de arte […] e bugigangas”. O “hobby” de Mary Teck permaneceu como uma de suas maiores ocupações durante seus últimos anos. Vivendo na Marlborough House durante o reinado de seu filho, George VI, e de sua neta, Elizabeth II, a rainha-viúva começou então a catalogar sua própria vida, registrado e organizando documentos para um futuro biógrafo. Com a mesma meticulosidade com que organizou a coleção real, a próprio arquivista facilitou o trabalho de escritores, ao lhes oferecer uma coleção detalhada de fontes para que a história de sua vida pudesse ser (re)contada.
Referências Bibliográficas:
EDWARDS, Anne. Matriarch: Queen Mary and the House of Windsor. London, UK: Rowman & Littlefield Publishers, 2014.
MEARES, Hadley Hall. Collector or Thief? Inside Queen Mary’s Royal Collections. 2021 – Acesso em 01 de Julho de 2025.
POPE-HENNESSY, James. The Quest for Queen Mary. Editado por Hugo Vickers. UK: Zuleika, 2019.
POPE-HENNESSY, James. Queen Mary: 1867-1953. London, UK: George Allen and Unwin Limited, 1959.
TAMBLING, Kirsten. By Royal Arrangement: Queen Mary’s Compulsive Collecting. 2021- Acesso em 01 de Julho de 2025.
TAPIOCA Neto, Renato Drummond. Riqueza até nos mínimos detalhes: a impressionante casa de bonecas da rainha Mary! 2020 – Acesso em 01 de Julho de 2025.


