Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Em 1761, uma jovem princesa oriunda da região nordeste do atual território da Alemanha, viajava até a Inglaterra para se casar com um parente que ela não conhecia, o rei George III. A união fora arranjada pela mãe do noivo, a princesa Augusta de Saxe-Gota. Nascida em 19 de maio de 1744 no castelo de Mirow, no ducado de Meclemburgo-Strelitz (antigo estado que compunha o Sacro Império Romano-Germânico), Sophie Charlotte foi a oitava filha do duque Charles Louis Frederick, príncipe de Mirow, com a duquesa Elizabeth Albertine de Saxe-Hildburghausen. A esposa do rei George serviria como rainha do Reino Unido desde sua chegada, em 1761, até o ano de sua morte, em 1818. Em termos de longevidade, ela só fica atrás do príncipe Philip, marido da rainha Elizabeth II, que ocupou o posto de consorte real por 69 anos. Atualmente, a vida da soberana ganhou um interesse redobrado por parte do grande público, devido à série de sucesso da Netflix, “Bridgerton”. A obra é produzida por Shonda Rhimes, baseada na série de livros de Julia Quinn. Interpretada pela atriz Golda Rosheuve, a série reacendeu uma polêmica a respeito da birracialidade da rainha, uma alemã, que tinha uma antepassada moçárabe que viveu no século XIII.

Retrato da coroação da rainha Charlotte, pintado por Allan Ramsay, em 1761.
Quando criança, Charlotte de Meclemburgo-Strelitz recebeu uma boa educação, desenvolvendo uma sensibilidade especial para a música e para as artes. Além disso, seu professor de ciências, o pastor luterano M. Gentzner, lhe inculcou desde cedo o interesse por botânica e mineralogia. Tendo se casado com o rei em 8 de setembro de 1761, um dia após sua chegada ao Palácio de St. James, Charlotte, porém, sabia pouquíssimo a respeito dos costumes locais e sequer conseguia manter uma conversa com o marido em inglês. Como George era fluente em alemão, o jovem casal se comunicava através desse idioma nos primeiros anos de sua vida de conjugal. Aparentemente, a esposa agradou bastante ao rei, seis anos mais velho do que ela. Os dois compartilhavam os mesmos interesses pelas ciências naturais e pela música. O primeiro filho do casal, batizado de George, príncipe de Gales e herdeiro do trono, nasceu em 12 de agosto de 1762, pouco menos de um depois da união de seus pais. Ao todo, o casal teria 15 filhos, dos quais 13 sobreviveram à primeira infância. Isso fez de Charlotte uma das soberanas mais prolíficas da história da Grã-Bretanha. Infelizmente, os príncipes e princesas da Casal Real de Hanôver foram incapazes de produzir uma prole tão vasta de sucessores para a Coroa, causando assim uma crise dinástica, que só foi resolvida com o nascimento da princesa Alexandrina Vitória, filha de Edward, duque de Kent.
George e Charlotte desfrutavam de uma perfeita harmonia conjugal, o que era muito raro em casamentos dinásticos, geralmente motivados por política. Eles passavam boa parte do tempo na recém-adquirida Buckingham House, na época conhecida como “casa da rainha”, onde Charlotte supervisionava a criação dos filhos. As constantes gravidezes, porém, eram um fardo para ela. Como a principal tarefa de uma rainha consorte era gerar sucessores para o trono, então a soberana não tinha qualquer tipo de controle sobre o tamanho de sua família. Em 1780, quando estava esperando seu 14° filho, o príncipe Alfred, ela escreveu: “Não acho que um prisioneiro possa desejar mais ardentemente sua liberdade do que eu desejo me livrar do meu fardo e ver o fim da minha campanha. Eu ficaria feliz se soubesse que esta é a última vez”. Porém, a criança faleceu com menos de dois anos, tendo adoecido após receber a inoculação contra o vírus da varíola, em 1782. No ano seguinte, o príncipe Otávio, que era 19 meses mais velho do que o irmão, também morreu em decorrência da mesma enfermidade. A última criança nascida do casamento entre Charlotte e George foi a princesa Amélia, que veio ao mundo no dia 7 de agosto de 1783, quando sua mãe já tinha 39 anos. Essa sucessão de partos teria graves consequências para a compleição física da rainha no futuro.
Embora fosse comum as esposas dos monarcas não participarem tanto da criação dos filhos, Charlotte resolveu seguir o exemplo oposto. Quando um bebê real nascia, geralmente era logo enviado para uma residência própria, com sua própria equipe de criados e séquito. Seus pais só o viam ocasionalmente. A consorte do rei George III não apenas manteve a prole próxima a si, como também lamentou profundamente a morte prematura de Alfred e Otávio. Numa época em que a mortalidade infantil era muito alta, a rainha escreveu um bilhete para a babá do príncipe Alfred, agradecendo-lhe pelos cuidados demonstrados nos momentos finais do menino. Junto com a nota manuscrita, a soberana enviava também um memento contendo uma mecha de cabelos da criança: “Receba este receptáculo como um reconhecimento por sua presença muito afetuosa ao lado do meu querido anjinho Alfred, e use o cabelo dentro do fecho, não apenas em memória desse querido objeto, mas também como uma marca da estima de sua afetuosa rainha Charlotte”. A soberana dispensava atenção redobrada ao marido, especialmente depois que George começou a demonstrar sinais de um comportamento errático e às vezes violento. Os problemas psicológicos do rei foram encarados na época como loucura e ele recebeu um tratamento brutal para o padrões clínicos de hoje. Seu médico, o Dr. Francis Willi, recomendava o uso de camisas de força e banhos gelados. Hoje, acredita-se que George sofresse de porfiria, o que afetava seu sistema nervoso

O rei George III, a rainha Charlotte e seus seis primeiros filhos, por Johann Zoffany em 1770. Esquerda para direita: William, George, o Príncipe de Gales, Frederico, Edward, o rei George III, Charlotte, a Princesa Real, e Augusta Sofia com a rainha Charlotte.
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Apesar das origens modestas da rainha Charlotte, oriunda de um ducado não tão próspero, isso não impediu que ela logo se afinasse com a moda do período, tornando-se um modelo para outras mulheres nobres da sociedade. Seu interesse pela música fez com que ela patrocinasse compositores do calibre de Johann Christian Bach, que a considerava uma amiga e apoiadora. Por meio do incentivo da rainha, Bach conseguiu o posto de músico de Estado do rei George III, substituindo o célebre George Frideric Handel, falecido em abril de 1759 e autor do hino “Zadok the Priest”, tocado nas cerimônias de coroação dos monarcas britânicos, como na de George e Charlotte, ocorrida na Abadia de Westminster, em 22 de setembro de 1761. Para a ocasião, a rainha usou o mesmo vestido de seu casamento, uma peça riquíssima, forrada com pele de arminho e costurada em veludo nas cores azul real e dourado. Brilhantes e pérolas podiam ser vistas por toda a extensão do corpete e da saia. Naquele período, a sogra da rainha, a princesa Augusta, exercia grande influência no Conselho Privado e sobre as decisões do filho. Isso mudou à medida em que Charlotte ia gerando um filho atrás do outro, solidificando assim sua posição como soberana. Seu patrocínio às artes e à ciência também contribuiu muito para que ela traduzisse uma imagem positiva para a família real, reforçando seu papel como mãe da nação.
Dizem que Charlotte também teve grande impacto na carreira do compositor austríaco, Wolfgang Amadeus Mozart. O gênio precoce da música conquistou a rainha quando tinha apenas oito anos e estava em viagem com a família pela Inglaterra, em 1764. Anos mais tarde, ele comporia sua Opus 3 em homenagem à soberana. Na página de dedicatória da Ópera, o compositor diz o seguinte:
Cheio de orgulho e alegria por ousar oferecer-lhe uma homenagem, eu estava terminando essas sonatas para serem colocadas aos pés de Vossa Majestade; Eu estava, confesso, ébrio de vaidade e emocionado comigo mesmo, quando avistei o Gênio da Música ao meu lado.
Não obstante, o amor por Mozart e pela Ópera era algo que ligava a rainha Charlotte a outra soberana do período: Maria Antonieta! Apesar de a rainha da França ser onze anos mais nova do que a monarca do Reino Unido, as duas mantiveram ávida correspondência durante sua vida e chegaram a ser comparadas em termos de aparência. Antonieta colocava no papel todas as suas angústias a respeito dos ventos da Revolução no país, para grande desespero de Charlotte. A esposa do rei George chegou até a preparar aposentos para Luís XVI e sua família, caso eles conseguissem fugir da França em direção à Inglaterra. Quando os dois foram decapitados em 1793, a rainha Charlotte passou a temer que um movimento revolucionário de tamanhas proporções também atingisse um reino tão próximo quanto o da Inglaterra.

A rainha Charlotte em 1781, por Thomas Gainsborough.
Com efeito, o próprio rei George III já havia enfrentado uma revolta capitaneada pelos seus súditos na América do Norte. Após o Reino Unido vencer a Guerra dos Sete Anos contra a França e recebido o território do atual Canadá com indenização, os impostos sobre os colonos aumentaram exponencialmente, para bancar os custos com o conflito. O resultado foi uma Revolução, que culminou com a independência das treze colônias inglesas, rebatizadas de Estados Unidos. O rei George e a rainha Charlotte foram, portanto, seus últimos soberanos. Enquanto consorte real, a monarca se dedicou a atividades filantrópicas, a exemplo da abertura de orfanatos e hospitais para mulheres grávidas. Ela era uma árdua defensora da educação feminina, tendo providenciado para suas filhas uma formação acima da de outras princesas do continente. Charlotte também era uma amante do paisagismo, cuidando pessoalmente das reformas dos magníficos jardins de Kew. Constantemente, navegadores e exploradores britânicos, como o lendário capitão Cook e Sir Joseph Banks, traziam para ela animais e espécies de plantas de todas as partes do mundo. Seu interesse por botânica era tamanho, que uma belíssima espécie de flor da África do Sul recebeu o nome científico de Strelitzia reginae, em homenagem à rainha consorte.
Charlotte de Meclemburgo-Strelitz supervisionou também os trabalhos de vários pintores do período, particularmente o de Sir Allan Ramsay, que a retratou em seus primeiros anos como rainha, ao lado dos pequenos filhos. As telas de Ramsay são particularmente interessantes, uma vez que capturam como poucas as características faciais de Charlotte, tais como seu nariz largo, lábios carnudos, cabelos castanhos e um tom de pele mais escuro. Um registro manuscrito do barão de Stockmar, médico que acompanhou Leopold de Saxe-Coburgo e sua esposa, a princesa Charlotte de Gales, descrevia a rainha como “pequena e torta, com um verdadeiro rosto de mulata”. Já o famoso romancista Sir Walter Scott, a chamou de “mal-colorida”, enquanto o Primeiro-Ministro disse que “seu nariz é muito largo e seus lábios muito grossos”. Embora essas descrições transportem consigo um profundo cunho pejorativo, já que a aparência da rainha foi desqualificada pelo seu “rosto de mulata” e pele “mal-colorida”, por outro lado, elas nos dão um bom indício acerca das feições de Charlotte. Muitos habitantes das colônias britânicas na África, inclusive, celebravam a esposa do rei por considerarem-na uma semelhante. Convencidos por seus retratos pintados e efígies cunhadas em moedas, eles acreditavam que ela tinha ascendência africana.
No futuro, tais evidências serviram como base para o argumento de que Charlotte teria sido a primeira soberana birracial do Reino Unido, antecipando em três séculos a entrada da atriz afro-americana, Meghan Markle, na família real. De fato, a esposa do rei George III possuía ancestralidade africana, uma vez que ela era descendente de Madragana Ben Aloandro, uma moçárabe que foi amante do rei D. Afonso III de Portugal e que viveu no século XIII. A rainha poderia retroceder sua árvore genealógica quinze gerações, até chegar em Margarita de Castro e Souza, que provinha de um ramo bastardo de Afonso III e sua mencionada amante. Embora alguns historiadores, como Mario De Valdes y Cocom, afirmem que a rainha Charlotte era mestiça, outros, como Ania Loomba, professora de raça e colonialismo da Universidade da Pensilvânia, dizem que tais afirmações são inconclusivas, visto que a palavra “blackmoor”, usada para descrever Margarita de Castro e Souza, era utilizada na época de Shakespeare para se referir a um indivíduo mulçumano e não necessariamente negro. Teriam então os pintores do período, como Joshua Reynolds, Thomas Gainsborough e Thomas Lawrence embranquecido propositalmente a pele da rainha em suas telas? Além disso, uma herança genérica que remonta há 500 anos antes do nascimento de Charlotte seria um argumento muito fraco para classificá-la como birracial.
Charlotte e George tiveram a sorte de observar seus filhos crescerem. Mas, enquanto os monarcas desfrutavam de uma ótima vida conjugal, o mesmo não poderia ser dito de sua prole. Em 1795, a rainha arranjou um casamento entre George, o príncipe de Gales, com sua prima alemã, Carolina de Brunsvique. Marido e esposa se detestaram desde o início. A única vez em que dormiram juntos foi na noite de núpcias, o suficiente para que a princesa de Gales engravidasse. Em 7 de janeiro do ano seguinte, nasceu a princesa Charlotte, batizada em homenagem à sua avó. Infelizmente, a jovem faleceu aos 21 anos, em 1817, provocando assim uma crise dinástica. Apesar de terem sido pais 15 vezes, George e Charlotte tinham poucos netos nascidos dentro do casamento e que estavam aptos para assumir o trono. Imediatamente, os demais filhos do casal trataram de se unir em matrimônio com outras princesas europeias, na esperança de gerar um sucessor. Das filhas da rainha, apenas Charlotte, a Princesa Real, teve descendência com seu marido, Frederico I de Württemberg. Já suas irmãs não tiveram a mesma sina, uma vez que a rainha as manteve quase enclausuradas perto de si, com pouco contato com noivos em potencial. Duas delas, Sophie e Elizabeth, acabaram tendo filhos bastardos, alimentando assim os boatos que mancharam a reputação da família real no início do século XIX.

A rainha Charlotte em 1812, com base em tela de William Beechey.
Infelizmente, a rainha Charlotte não viveu o suficiente para assistir ao nascimento, em 1919, daquela que seria a grande herdeira do trono de seu avô: Alexandrina Vitória de Hanôver, a futura rainha Vitória, que emprestaria seu nome a uma das maiores Eras da história britânica. A esposa de George III faleceu no dia 17 de novembro de 1818, no Palácio de Kew. Ela tinha 74 anos e sofria de hidropsia, o que lhe causava inchaço e provocava bastante dor. Charlotte havia se retirado para Kew na esperança de uma recuperação em meio à natureza que cercava o Palácio. Porém, ela contraiu uma pneumonia e acabou falecendo, deixando seu marido viúvo. O caixão da soberana foi chumbado e depois colocado sobre um estrado na sala de jantar, localizada no andar de baixo. Em um ambiente forrado com seda preta, a rainha foi velada com luminárias enviadas diretamente da Torre de Londres. Durante 10 dias, os visitantes foram admitidos para prestar seus últimos tributos em memória da monarca. O funeral, por sua vez, aconteceu no dia 2 de dezembro, na Capela de São Jorge, no Castelo de Windsor (onde Charlotte se encontra sepultada, ao lado do marido). Apesar do frio e do mau tempo, milhares de pessoas se aglomeraram ao redor do Palácio para testemunhar sua jornada final. Afinal, Charlotte serviu como consorte real por quase 58 anos, tendo sido a mulher que por mais tempo ocupou esse posto na história do Reino Unido.
Referências Bibliográficas:
CURZON, Catherine. The Real Queen Charlotte: Inside the Real Bridgerton Court. Great Britain: Pen & Sword History, 2022.
HADLOW, Janice. A Royal Experiment: The Private Life of King George III. New York: Henry Holt and Co. 2014.
_.The Strangest Family: The Private Lives of George III, Queen Charlotte and the Hanoverians. London: William Collins, 2014.
TAPIOCA Neto, Renato Drummond. Seria Charlotte de Mecklenburg a primeira soberana de ascendência africana na história do Reino Unido? 2020 – Acesso em 15 de Agosto de 2024.
WALK-MORRIS, Tatiana. Five Things to Know About Queen Charlotte. 2017 – Acesso em 15 de Agosto de 2024.













