A figura do cafajeste na Literatura Brasileira: Fernando Seixas, o noivo vendido de Aurélia Camargo

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

De acordo com o modelo de família nuclear que emergiu com a ascensão da burguesia no século XIX, ao tomar esposa e constituir família, o homem deveria trabalhar pelo sustento dela, podendo contar, em algumas ocasiões, com a ajuda do sogro, caso este fosse bem estabelecido na sociedade e tivesse conexões importantes no mundo do comércio ou da política. Mas, diferentemente do que era esperado de um chefe de família no século XIX, a personagem Fernando Seixas não se adequava a esse padrão varonil de sustentáculo familiar. Após a morte de seu pai, aos 18 anos ele teoricamente se tornou o líder da pequena família, residente numa casa simplória na Rua do Hospício, devendo, portanto, assumir as funções de provedor financeiro do lar, o que não fez. Em vez disso, era sustentado pelo dinheiro que sua mãe, D. Emília, e as irmãs, Nicota e Mariquinhas, recebiam costurando para fora. “Privadas de toda distração”, elas “trabalhavam à luz da candeia para ganhar uma parte do necessário” (ALENCAR, 1997, p. 41).

Sob o pseudônimo de Elisa do Vale, José de Alencar redigiu duas cartas assinadas por Paula de Almeida, publicadas no Jornal do Comércio, em que definia Seixas da seguinte forma:

Leviano, fácil, descuidado no viver banal, seu coração brioso, até ali sopitado pelos hábitos da vida elegante, abate-se e emudece ante a primeira humilhação; mas a revolta não tarda, e anuncia-se na frieza daquela implacável ironia com que se pune a si para flagelar a mulher. […] Fernando não é um homem vil. Tem a honestidade vulgar, com que a sociedade acomoda-se. O fato por ele praticado não passa de um casamento por conveniência, cousa aceita e respeitada pelo mundo. […] Seixas é uma fotografia; eu conheço vinte originais dessa cópia. A sociedade atual gera aos pares desses homens de cera, elegantes, simpáticos e banais, que se moldam a todas as situações da vida artificial dos salões (apud MARCO, 1986, p. 60-61).

Tendo gastado o pouco dinheiro que a família possuía e o dote da irmã que estava numa poupança na Caixa Econômica, Fernando viu em um casamento de conveniência a possibilidade de recuperar aquilo que foi consumido e receber um impulso na sua futura carreira de político, graças ao apoio do pai da noiva escolhida. “Vegetar na penumbra da mediania e consumir esterilmente sua mocidade” (ALENCAR, 1997, p. 45), ao assumir suas responsabilidades como sustentáculo da família, era algo que para ele estava fora de questão. Seixas “não só se ausenta da função masculina de manter a família, como ainda se reduz a uma pobreza maior do que a herdada. Ele está francamente no polo débil da cadeia familiar” (RIBEIRO, 2008, p. 167).

O universo dos bailes e salões elegantes é o ambiente frequentado pela personagem Fernando Seixas (A Hunt Ball – 1885, por Julius LeBlanc Stewart).

Assim, Fernando Seixas se firmou na convicção de que “o luxo era não somente a porfia infalível de uma ambição nobre, como o penhor único da felicidade de sua família” (ALENCAR, 1997, p. 45). Para Luiz Filipe Ribeiro:

E esse mundo é a pátria natural de Fernando. Para ele a vida se resume a esse espaço público; a privacidade doméstica lhe inspira sagrado horror. Ele vive num grande palco e amarra todas as suas relações num quadro de vida permanentemente pública. A tal ponto que, renunciar a ela equivaleria a um suicídio moral e à perda da própria identidade. Para Fernando, como para os demais elegantes da época, a identidade pessoal confundia-se com a imagem pública que assumiam. Perder uma era, irremediavelmente, abrir mão da outra. E o casamento era uma das formas legítimas de construir uma e manter a outra (RIBEIRO, 2008, p. 162).

José de Alencar nos fala em seus romances da existência desses “leões fluminenses”, homens que, como Fernando Seixas em Senhora, ou Horácio em A pata da gazela, andavam pelos salões da corte à procura de um partido economicamente vantajoso para contrair matrimônio, pois o casamento, “desde que não lhe trouxesse posição brilhante e riqueza, era para ele nada menos que um desastre” (ALENCAR, 1997, p. 100). Ou seja, na visão da personagem o casamento, desde que não lhe trouxesse vantagens, seria algo indesejável. É no ambiente de bailes que surge a protagonista Aurélia Camargo. Através dela, o autor critica os casamentos arranjados com base no interesse econômico, ao criar um enredo no qual a menina rica compra com um dote de 100 contos o homem que a rejeitou quando era uma moça pobre:

Convencida de que todos os seus inúmeros apaixonados, sem exceção de um, a pretendiam unicamente pela riqueza; Aurélia reagia contra essa afronta, aplicando a esses indivíduos o mesmo estalão.

Assim costumava ela indicar o merecimento relativo de cada um dos pretendentes, dando-lhes certo valor monetário. Em linguagem financeira, Aurélia cotava os seus adoradores pelo preço que razoavelmente poderiam obter no mercado matrimonial.

Uma noite, no Cassino, a Lísia Soares, que se fazia íntima com ela, e desejava ardentemente vê-la casada, dirigiu-lhe um gracejo acerca do Alfredo Moreira, rapaz elegante que chegara recentemente da Europa:

– É um moço muito distinto, respondeu Aurélia sorrindo; vale bem como noivo cem contos de réis; mas eu tenho dinheiro para pagar um marido de maior preço, Lísia; não me contento com esse.

Riam-se todos destes ditos de Aurélia, e os lançavam à conta de gracinhas de moça espirituosa; porém a maior parte das senhoras, sobretudo aquelas que tinham filhas moças, não cansavam de criticar esses modos desenvoltos, impróprios de meninas bem-educadas.

Os adoradores de Aurélia sabiam, pois ela não fazia mistério, do preço de sua cotação no rol da moça; e longe de se agastarem com a franqueza, divertiam-se com o jogo que muitas vezes resultava do ágio de suas ações naquela empresa nupcial (ALENCAR, 1997, p. 18-19).

Aurélia atribuía assim um preço a todos os seus adoradores. De acordo com Ribeiro, “é porque é rica, muito rica, que [Aurélia] se impõe a um mundo que só se move nas malhas do dinheiro: o que não se configura um ambiente de nobreza, mas apenas o da classe enriquecida que habitava na corte” (2008, p. 150). Graças à herança do avô, Aurélia passou a ser portadora de um grande patrimônio que lhe possibilitou adentrar no mercado matrimonial, tendo o tio Lemos como representante, para contratar o casamento com o homem desejado.

Christine Fernandes e Gabriel Braga Nunes como Aurélia Camargo e Fernando Seixas, respectivamente, na novela “Essas Mulheres”, transmitida em 2005 pela Rede Record.

Durante o período imperial, o trabalho pesado, especialmente nas lavouras, era principalmente realizado por escravos. Os trabalhos especializados, porém, que dependia da cultura letrada, era realizado pelos filhos homens das grandes famílias e seus agregados, que tiveram a oportunidade de estudar na Europa, ou Direito na Faculdade do Lardo do São Francisco, em São Paulo, e até mesmo no Recife. Uma vez formados, esses rapazes eram inseridos no aparelho do Estado, graças às conexões políticas de seus familiares, reforçadas pelas alianças matrimoniais, e através de uma rede de troca de favores, quando não se tornavam herdeiros de deputados, senadores e ministros do Império. Dessa forma, a elite branca se reproduzia por meio dessas redes e conexões. Mas e quanto aos moços brancos livres e pobres, como o Fernando Seixas? Eles não podiam executar o trabalho escravo, mas também não podiam ocupar as mesmas posições dos moços brancos e ricos. Basicamente, esses homens pobres e livres dependiam dos favores dos poderosos, uma estrutura que marcou (e ainda marca) a sociedade brasileira.

Segundo Maria Sylvia de Carvalho Franco, “uma das mais importantes implicações da escravidão é que o sistema mercantil se expandiu condicionando a uma fonte externa de suprimento de trabalho” (1997, p. 14), o que deu origem à formação de uma camada de homens livres e expropriados, que não foram integrados à formação mercantil. Para a autora:

A constituição desse tipo humano prende-se à forma como se organizou a ocupação do solo, concedido em grandes extensões e visando culturas onerosas […]. Esta situação – a propriedade de grandes extensões ocupadas parcialmente pela agricultura mercantil realizada por escravos – possibilitou e consolidou a existência de homens destituídos da propriedade dos meios de produção, mas não de sua posse, e que não foram plenamente submetidos às pressões econômicas decorrentes dessa condição, dado que o peso da produção, significativa para o sistema como um todo, não recaiu sobre seus ombros. Assim, numa sociedade em que há concentração dos meios de produção, onde vagarosa, mas progressivamente, aumentam os mercados, paralelamente forma-se um conjunto de homens livres e expropriados que não conheceram os rigores do trabalho forçado e não se proletarizaram (1997, p.14).

A citação de Franco nos serve aqui para pensar o alcance da representação da personagem Fernando Seixas, que fazia parte dessa “ralé” de “homens a rigor dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à sociedade” (1997, p. 14). Conforme dito anteriormente, Fernando era um homem branco desempregado, sustentado pelo trabalhos das irmãs e da mãe, que aspirava a ascensão social através de um casamento vantajoso, de preferência com uma noiva cuja família possuísse conexões na política. De outra forma, dificilmente poderia ocupar um alto cargo no governo. Lhe faltava o berço e o dinheiro para isso.

“Fernando não é um homem vil. Tem a honestidade vulgar, com que a sociedade acomoda-se. O fato por ele praticado não passa de um casamento por conveniência, cousa aceita e respeitada pelo mundo” (Leon Riesener. por Eugene Delacroix).

Com efeito, como o casamento com Aurélia não lhe oferecia possibilidades de enriquecimento, tratou de romper o noivado com a moça. Mas apesar de se valer de sua boa aparência e seus modos refinados para seduzir as filhas dos grandes dignitários, ele pertencia à “ralé” dos homens livres, em busca de compadrio. Muitos dos homens como Fernando, não raramente, acabavam se marginalizando. Conforme explica Franco, “a situação de carência a que ficaram relegados em todos os planos da vida, ao mesmo tempo que definiram relações de cooperação, fizeram com que o conflito se determinasse correlatamente e atravessasse todas as áreas de organização social” (1997, p. 235). Quando as esperança de ascensão social por meio do casamento com Adelaide Amaral estavam quase desfeitas para Fernando Seixas, eis que surge uma noiva em disponibilidade, com o vultoso dote de cem contos de réis: Aurélia Camargo. Disposta a pagar o maior preço pelo noivo, ao longo da trama, Aurélia passará a infligir uma série de humilhações ao companheiro, visando sua recuperação moral, para que ao final do romance recupere seu valor como homem e se adeque ao modelo de virilidade esperado do sexo masculino na sociedade burguesa em ascensão.

Notas sobre as Referências Bibliográficas:

O texto acima foi extraído da dissertação de mestrado de Renato Drummond Tapioca Neto, escrita sob orientação do professor Dr. Marcello Moreira, no Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade. Para uma referência completa das fontes utilizadas para a escrita desse texto, acesse: http://www2.uesb.br/ppg/ppgmls/wp-content/uploads/2017/08/Disserta%C3%A7%C3%A3o-Renato-Drummond-Tapioca-Neto.pdf

6 comentários sobre “A figura do cafajeste na Literatura Brasileira: Fernando Seixas, o noivo vendido de Aurélia Camargo

  1. Já fiz o down da sua dissertação, sou de História e pretendo fazer um projeto para o mestrado com a bendita Literatura pelo meio, rsrs! Muito lega!!! Parabéns pelo artigo.

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  2. Renato lhe parabenizo pelo trato de linguagem, costumo sempre ler os seus artigos e, geralmente, são bastantes esclarecedores e além do mais procuram tratar de temas literários pontuais.

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