A “rainha do lar” e a “mulher da vida”: a construção das imagens femininas no século XIX

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

O século XIX, herdeiro da dupla revolução tecnológica e política ocorridas na Inglaterra e na França, respectivamente, assistiu à ascensão da sociedade burguesa, cujos valores e costumes se difundiram em várias partes do mundo, incluindo o Brasil. Os produtos industrializados ingleses eram largamente consumidos pela população do período, mas era da França que vinham as últimas tendências da moda, enchendo as vitrines da Rua do Ouvidor com artigos de luxo para o consumo de homens e mulheres. A fase do Segundo Reinado brasileiro foi um dos momentos mais ricos da nossa história, não só pelas personalidades que marcaram a época, como também pelos acontecimentos no plano político e cultural, que fizeram da corte do Rio de Janeiro um verdadeiro centro de sociabilidade para aqueles que queriam ser aceitos entre a classe senhorial. Era esse o cenário onde mocinhas casadouras, imortalizadas por José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo nos seus romances urbanos, transitavam ao lado de donas-de-casa e mãe trabalhadoras, em praças, lojas e confeitarias, no teatro e em bailes da corte. Ao lado desses perfis de mulher, existia outro, em torno do qual muito do debate médico, literário e jornalístico do Brasil oitocentista se concentrou: o da prostituta.

Assim como nos principais centros urbanos da Europa (Londres, Paris, etc.), o Rio de Janeiro se tornou numa espécie de “laboratório de observação”, onde políticos, médicos e reformadores sociais “construíram uma concepção de cidade permeada por imagens contraditórias” (ENGEL, 2004, p. 37), entre elas o da “mãe-de-família” – identificada com a moralidade – e o da “prostituta” – identificada com a imoralidade.  A Europa não só exportava para o Brasil produtos, capitais e colonos, como também mulheres (as chamadas polacas e as cocotes francesas, entre outras) para a produção do prazer. Ao longo do século XIX, especialmente a partir dos anos 1850, chegaram à corte “cáftens e prostitutas, agentes e objetos de um desumano comércio que se expandia à medida que o capitalismo se irradiava pelos demais continentes, a despeito da apologia da liberdade no trabalho” (MENEZES, 1992, p. 31). Pode-se se dizer que foi no meado do oitocentos que se intensificou na capital brasileira um grande número de prostitutas, classificadas em três ordens: as chamadas “aristocráticas”, as de “sobradinhos”, ou a “escória” (que se espalhavam por casebres e mucambos). Eram consideradas um “mal necessário”, dentro dessa sociedade de gostos burgueses, que se afixava no Brasil durante o Segundo Reinado.

Prostitutas retratadas por Tolouse Lautrec, na tela Au Salon de la rue des Moulins (1894).

A imagem idealizada da mulher no século XIX associava-a ao espaço doméstico, sendo a mulher considerada, portanto, um apêndice da casa e do marido e dedicada à criação dos filhos. Embora houvessem certas dissimilitudes entre o discurso e a prática, esse perfil era difundido em muitos romances de caráter pedagógico, em manuais de etiqueta, matérias de jornal, teses médicas, entre outros meios de informação. Contrária a essa imagem de virtuosidade estava a da prostituta, frequentemente associada ao vício e à proliferação de doenças venéreas, como a sífilis. A historiadora Margaret Rago, no seu livro Os prazeres da noite (2008), afirmou que p perfil da prostituta, no século XIX, foi construído em oposição ao da dona-de-casa, e vice-versa. A “prostituta” como o estereótipo que deveria ser evitado a todo custo pelas outras mulheres, e a “dona-de-casa” como aquilo que a prostituta nunca seria. Porém, ao passo em que as mulheres adentravam no mercado de trabalho e se inseriam no mundo do lazer, ganhando assim as ruas, elas começaram a dividir o espaço comum do perímetro urbano com as meretrizes. Com a expansão da vida noturna no Segundo Império, pode-se dizer também que um nova perfil de mulher, a da artista, chegou para oferecer maior contraste à da “rainha do lar”. Por seu modo de ser e de agir, a figura da artista foi associada à imagem da prostituta.

O discurso ideológico do século XIX, especialmente, acentuou a divisão de papéis entre homens e mulheres. Cada um tinha suas funções, tarefas e espaços, com lugares a serem ocupados e definidos nos seus mínimos detalhes: para o marido, o espaço público, para a esposa, o privado. De acordo com Michelle Perrot, “existe um discurso dos ofícios que faz a linguagem do trabalho uma das mais sexuadas possíveis. ‘Ao homem, a madeira e os metais. À mulher, a família e os tecidos” (1992, p. 178). A própria política havia contribuído para acentuar essa interpretação dos papéis masculinos e femininos ao distinguir as categorias “produção”, “reprodução” e “consumo”. Nesse caso, caberia ao homem assumir a primeira, enquanto a mulher ficara com a terceira. A segunda (a da reprodução), contudo, seria tarefa de ambos. Nesse discurso moralizante, o mundo das chamadas “mulheres honestas” era, na maioria dos casos, o do ócio, das visitas a parentes e amigos e da vida doméstica. Muitos homens e mulheres eram preparados desde cedo para exercer seus respectivos papeis dentro da sociedade. A mulher que transgredisse esse ideal, estaria assim exposta a vários comentários e suspeitas quanto à sua conduta moral.

A imagem idealizada da mulher no século XIX a vestia com o manto da dona de casa e de mãe. Pintura de Eugenio Zampighi, “Idyllic Family Scene with Newborn” (séc XIX).

Na outra esfera, havia a prostituta, considera uma mulher lasciva, debochada e insubmissa. O oposto do imaginário da mãe e dona-de-casa. Era um ser imaturo e instável, ou, como disse Nickie Roberts, “mal-humorada e selvagemente frívola, arrogante e vulgarmente familiar; mudava constantemente e impulsivamente suas opiniões, trajes, humores, casa e até mesmo classe social” (1998, p. 268), contrário, portanto, ao ideal de passividade e submissão esperado do sexo feminino. Em Os estrangeiros e o comércio de prazer nas ruas do Rio de Janeiro (1890-1930), Lená M. de Menezes afirma que:

A alegre vida dos cafés, cantantes e dançantes, dos restaurantes, dos teatros e das confeitarias modificou o cotidiano da mulher carioca. Paulatinamente esta ganhou o mundo do lazer, ao mesmo tempo em que começava a se inserir no mundo do trabalho. Cada vez mais a “mulher honesta” ganhou as ruas e dividiu espaços comuns com as cortesãs de luxo, na vida noturna, e com o baixo meretrício, na circulação das ruas. Tal convivência firmou a necessidade da intervenção policial para a disciplinarização dos costumes, visando a manutenção dos valores tradicionais e da imagem da mãe-de-família (MENEZES, 1992, p. 25-6).

Com a introdução da mulher no mercado de trabalho, os lugares frequentados pelas ditas “mulheres honestas” e pelas prostitutas, aos poucos, se cruzaram. Observamo-las passeando pelas lojas elegantes da rua do Ouvidor, pelo Cassino, o teatro da Ópera, festas religiosas, entre outros lugares de sociabilidade que também eram frequentados pelas famílias. Aspecto esse que, com efeito, escandalizou algumas autoridades do período, que se movimentaram em debates com o intuito de restringir a circulação das prostitutas a alguns locais da cidade.

Muitos médicos higienistas, em suas trabalhos de conclusão de curso, apontaram para a necessidade de se regulamentar o meretrício, na expectativa de controlar a vida social das prostitutas e a proliferação de certas doenças, cuja contaminação, acreditava-se, estava ligada ao seu ofício. O médico Herculano Augusto Lassance Cunha, em tese intitulada A prostituição, em particular na cidade do Rio de Janeiro (1848), foi um dos primeiros acadêmicos a se debruçar sobre o tema da prostituição no Brasil de então. Seu trabalho seria posteriormente utilizado como referência por muitos outros médicos, em especial Francisco Ferraz de Macedo. Em tais estudos, era esboçado uma espécie de “mapa classificativo” da prostituição, que era dividida como “pública” e “clandestina”, e suas subdivisões em “difíceis” (primeiro gênero: floristas, modistas, vendedoras, entre outras; e segundo gênero: as “ociosas”, isoladas em casas aristocráticas), “fáceis” (mulheres de sobrados e bordéis) e as “facílimas” (“reformadas ou gastas”). Na outra esfera, havia a chamada “prostituição doméstica”, na qual se detectavam “mulheres de primeira classe” (viúvas, casadas, divorciadas, etc.) e de “baixas condições” (livres, libertas e escravas).

“Mal-humorada e selvagemente frívola, arrogante e vulgarmente familiar; mudava constantemente e impulsivamente suas opiniões, trajes, humores, casa e até mesmo classe social” – ilustração de duas prostitutas brigando (séc XIX).

Com efeito, é possível detectar a influência dos debates médicos sobre a prostituição mesmo na literatura que era produzida na época. José de Alencar, por exemplo, pode ser considerado um dos primeiros romancistas a explorar o tipo social da prostituta na peça As Asas de Um Anjo (1858) e depois em Lucíola (1862), onde o mundo das chamadas cortesãs de luxo era descortinado aos olhos do leitor. A ele se seguiram Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), com a personagem Marcela, e principalmente Aluísio Azevedo, em O Cortiço (1890), que apresentava, além da figura da prostituta, três outras práticas que eram associadas aos vícios debatidos pelos médicos: o lesbianismo, o onanismo e a pederastia. Esses mesmos autores, por sua vez, exploraram na sua vasta produção as duas imagens femininas: a “rainha do lar” e a “mulher da vida”. Sendo assim, a literatura pode oferecer um importante testemunho para o trabalho em História, desde que analisada através da representação de mundo que comporta em suas páginas. No caso da prostituta e da dona-de-casa, estas se movimentam num campo significacional rico e cheio de metamorfoses, na confluência de várias questões, como a sexualidade, o cuidado de si, o domínio do corpo, a maternidade, entre outros temas, que estão no centro dos debates sobre a condição feminina até os dias de hoje.

Referências Bibliográficas:

ALENCAR, José de. As azas de um anjo: comédia. Rio de Janeiro: Garnier, 1858.

_. Lucíola. – 22ª ed. São Paulo: Ática, 1998.

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, v. 2.

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Editora Abril, 2010.

AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. São Paulo: Editora Ática, 1997.

BERNARDES, Maria Thereza Caiuby Crescenti. Mulheres de Ontem?, Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo: T. A. Queiroz, 1988.

CUNHA, H. A. L. Dissertação sobre a prostituição em particular na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tip. Imparcial de Francisco de Paula Brito, 1845.

ENGEL, Magali. Meretrizes e doutores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). São Paulo: Brasiliense, 2004.

LEITE, Míriam Moreira (org.). A condição feminina no Rio de Janeiro, século XIX: antologia de textos de viajantes estrangeiros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993.

LOURENÇO, Wander. Com licença, senhoritas: a prostituição no romance brasileiro do século XIX. Niterói: Nitpress, 2006.

MACEDO, F. F. de. Da prostituição em geral, e em particular em relação à cidade do Rio de Janeiro: prophylaxia da syphilis. Rio de Janeiro: Tip. Acadêmica, 1872.

MENEZES, Lená Medeiros de. Os estrangeiros e o comércio de prazer nas ruas Rio (1890-1930). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.

RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista. 4ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014.

_. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

ROBERTS, Nickie. As prostitutas na História. Tradução de Magda Lopes. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1998.

SOARES, Luiz Carlos. Rameiras, Ilhoas e Polcas: a prostituição no Rio de Janeiro do século XIX. São Paulo: Editora Ática, 1992.

VERONA, Elisa Maria. Da feminilidade oitocentista. São Paulo: Unesp, 2013.

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