A rainha sob a pena de um romancista – resenha de “A rainha Margot”, de Alexandre Dumas.

DUMAS, Alexandre. A Rainha Margot. Tradução de Bruno Ribeiro de Lima e Lara Neves Soares. Barueri, SP: Amarilys, 2016.

Personagem hoje bastante conhecido tanto na literatura quanto no cinema, Margarida de Valois (Margot) foi uma das mulheres mais extraordinárias da história da França, tendo levado uma vida bastante incomum para outras princesas de seu tempo. Nascida em 14 de maio de 1553, suas bodas com o protestante Henrique de Navarra (mais tarde Henrique IV da França) foram marcadas por um dos eventos mais sangrentos já registrados: o massacre de São Bartolomeu, quando milhares de huguenotes foram assassinados nas ruas de Paris por forças da Coroa, em 24 de agosto de 1572. A partir de então, Margot se viu no olho do furacão dos principais acontecimentos que agitaram os últimos anos da dinastia dos Valois. De temperamento nada submisso, ela acabou se tornando um estorvo para sua família e marido, envolvendo-se em conspirações palacianas com supostos amantes e dando pouca importância para a imagem de promíscua que os outros faziam de si. Com sua morte, em 27 de março de 1615, ela foi aos poucos sendo apagada do imaginário coletivo. Seria preciso que um dos maiores nomes da literatura francesa do século XIX se debruçasse sobre a vida daquela mulher para então devolvê-la ao seu lugar de protagonista.

Alexandre Dumas

Conhecido por obras de grande sucesso, muitas das quais já adaptadas para o cinema, Alexandre Dumas deixou um valioso legado para a posteridade. Seus romances foram tão lidos e comentados, que, passando de geração para a geração, acabaram fazendo parte da memória da Nação francesa. Dentre seus livros mais famosos, podemos destacar O Conde de Monte Cristo, O Homem da Máscara de Ferro, Os Três Mosqueteiros e A Rainha Margot. Este último, primeiro volume da chamada série Trilogia das Guerras de Religião, que inclui na sequência A Dama Monsoreau e Os Quarenta e Cinco, foi responsável por reapresentar ao público a história de Margarida de Valois sob um ponto de vista bastante romanceado, cujo enredo prezava mais pela surpresa e pela novidade do que pela fidelidade aos fatos. A Margarida construída por Dumas é uma mulher delicada, de sentimentos nobres, dividida entre o amor de um nobre cavaleiro e seus deveres de rainha, esposa e filha; vivendo no seio de uma corte corrupta, marcada por conspirações e assassinatos. Em suma, uma personagem com a qual muitos de nós podemos nos identificar.

Publicado pela primeira vez entre 1844 e 1845 em formato de folhetins para o jornal La Presse, A Rainha Margot ganharia sua versão definitiva em livro pouco depois. A obra chegou ao Brasil em dezembro de 1845, publicada em partes pelo Jornal do Commercio, no Rio de Janeiro. Desde então, poucas edições dela foram lançadas no mercado literário brasileiro. Se comparado a outros romances de Dumas, Margot permaneceria quase desconhecida pelo nosso público de leitores atuais, não fosse a adaptação cinematográfica de 1994 da obra, dirigida por Patrice Chereau.  Em 1931, a editora Companhia Nacional lançou no mercado uma edição do romance em volume único. Quinze anos depois, a editora Lep Ltda. dividiu a obra em dois volumes, como até então vinha sendo editada na Europa. Cinquenta anos se passariam até que a editora Campanário publicasse novamente A Rainha Margot em volume único, trazendo na capa a belíssima Isabelle Adjani, no filme homônimo de 1994. Em 2001, a Companhia das Letras lançou uma versão adaptada do texto, direcionada ao público juvenil. Essa última tem sido a edição mais comercializada do romance. Contudo, a editora Amarilys acaba de publicar o que podemos chamar de versão definitiva do romance, no Brasil.

Com nova tradução de Bruno Ribeiro de Lima e Lara Neves Soares, a recente edição de A Rainha Margot ainda conta com prefácio de Maria Lúcia Dias Mendes, Dra. em Língua e Literatura Francesas. O acabamento e diagramação do livro estão impecáveis, impresso em papel Chambril e com capa dura. Sem dúvidas uma edição digna de Alexandre Dumas. Segundo Mendes:

A Rainha Margot é uma narrativa que traz, muito bem urdidas, algumas inquietações importantes para o romantismo de uma forma muito acessível a grande parte dos leitores. Mistura paixão, ódio, intolerância, vingança, desejo, ambição, traição, mistério, aventura, amizade, poder: toda as paixões que movem os homens desde os primórdios. Reúne todos os ingredientes necessários para fisgar até mesmo o leitor mais resistente ao gênero (2016, p. 9).

Para compor sua narrativa, Dumas certamente teve acesso a um documento muito importante: as Memoires de Margarida de Valois, escritas pela própria em 1599. Nessa obra, a autora reconta os acontecimentos de sua juventude sob seu ponto de vista, tentando justificar algumas de suas atitudes passadas. Das páginas desse livro, a figura da poderosa rainha Catarina de Médici, mãe de Margot, emerge em toda a sua imponência.

Margarida de Valois

O imaginário coletivo construído em torno da figura de Catarina gravou da soberana a imagem de uma mulher maquiavélica, capaz de tudo para conservar a coroa de seus filhos, incluindo o assassinato de seus inimigos. Atribuíram-lhe uma quantidade absurda de crimes que ela não cometeu, como o massacre de São Bartolomeu; imputaram-lhe ainda a arte dos venenos, que ela não possuía, ainda que sua família se tornasse conhecida por isso. Uma vez na França, Catarina era uma espécie de outsider, a rainha italiana, descendente de uma família de novos ricos. No século XIX, quando A Rainha Margot fora escrito, esse estereótipo ainda se encontrava cristalizado na memória dos franceses, principalmente depois dos eventos da Revolução de 1789, que não poupou ataques àquela mulher, morta há 200 anos. Catarina de Médici aparece na obra de Alexandre Dumas como uma pessoa vil, amarga, disposta a qualquer coisa para tirar o genro, Henrique de Navarra, do seu caminho. Querendo ou não, Dumas contribuiu para a manutenção da lenda negra de Catarina, algo que foi ressaltado pelas muitas adaptações da obra para o cinema.

Com efeito, a historiografia moderna tem sido muito mais gentil para com a figura da rainha mãe, ressaltando a mulher inteligente, pragmática e zelosa que ela foi. Sendo assim, o apelo aos fatos nos romances de Dumas não deve ser levado ao pé da letra. A História para ele nada mais é do que o palco para uma trama inventada, sem compromisso com a veracidade. Conforme nos diz a professora Mendes no prefácio à nova edição:

Não lhe interessa seguir fielmente os passos e os detalhes da História, interessa-lhe capturar o espírito, penetrar na vida quotidiana de uma época, trazer para seus leitores os acontecimentos passados e sobretudo as emoções que esses acontecimentos provocam em suas personagens (2016, p. 19).

Dessa forma, A Rainha Margot não deve ser lido como discurso da verdade, mas sim como o que de fato é: um produto da ficção. Sua trama, muito bem construída, apresenta ao leitor um universo inflamado por paixões, que ganha ritmo por meio de uma disputa de poderes entre a rainha Catarina de Médici e seu genro, Henrique de Navarra. No meio dos dois, se encontram Margot e seu amante, La Môle, um homem a quem ela salvou da morte na noite do massacre. É interessante perceber que, em suas Memoires, Margarida faz apenas uma breve referência ao conde de La Môle, que conspirou consigo para entronar o duque de Alençon na iminência da morte de Carlos IX. Alexandre Dumas, porém, resgatou essa personagem da periferia da história, levando-o para o centro de sua trama.

A amizade entre La Môle e Cocunás, no romance, constitui-se na única relação humana destituída de interesse, passando ao largo de questões morais, políticas e religiosas. O desfecho de ambos comove o leitor, que ganha apreço pelos dois no decorrer da narrativa. As personagens construídas por Dumas são dotadas de complexidade, “que se desvendam em diálogos precisos, dramáticos, que revelam os sentimentos, as intenções, os medos e explicitam suas intenções” (MENDES, 2016, p. 19). Nenhuma delas pode ser considerada inteiramente boa ou inteiramente má, e sim indivíduos cheios de falhas, que cometem erros, ora movidos pela paixão, ora movidos pelo ódio. Acredito que essa seja uma das características que mais os aproxima do público de leitores. Podemos ao menos tempo detestar Catarina de Médici, mas, por outro lado, conseguimos compreender os motivos que a impulsionam na direção deste ou daquele caminho. Dentro da vilã há também uma mãe que ama sua prole. Essa talvez seja a característica redentora da personagem.

Capa da nova edição de “A Rainha Margot”, publicada pela editora Amarilys.

Já Margot é a antítese de sua progenitora. Repleta de ambiguidade, típica das heroínas românticas, ela traduz para o leitor questões importantes para o movimento romântico, como a busca pela felicidade, pelo amor, pela paixão e pela liberdade. Não faltam ao seu núcleo insinuações de adultério e mesmo de incesto, o que pode ter causado um choque no público leitor da época. Nas palavras de Mendes, “definitivamente, não estamos diante de uma heroína romântica convencional” (2016, p. 21). Graças à pena de Alexandre Dumas, Margarida de Valois renasceu no imaginário coletivo, onde permanece cercada de encantamento e reverenciada por súditos que não cansam de lhe render sincera homenagem. Deixou de ser a rainha de Navarra para ser simplesmente a Magot, apelido pelo qual apenas seu irmão Carlos IX a chamava e que hoje é utilizado por muitos de nós, como se fôssemos íntimos da própria personagem. Junto com Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo, A Rainha Margot compõe a terceira ponta do triângulo das maiores obras do autor. Sua leitura é um deleite para os olhos e sua trama das mais bem construídas. Sem dúvidas, estamos diante de uma obra-prima da ficção histórica!

Renato Drummond Tapioca Neto

Graduado em História – UESC

Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade – UESB

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