Wu Zetian: a primeira (e única) mulher a se tornar imperador da China – Parte I

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Por muito tempo, rainhas e imperatrizes reinantes eram (quase) forçadas a governar como se fossem homens. Qualquer crítica seria duas vezes mais intensa para elas do que para eles. Mulheres como Cristina da Suécia ou Elizabeth I da Inglaterra, por exemplo, já suscitaram debates calorosos quanto aos seus modos de proceder. A primeira teria chegado ao ponto de se vestir com calças masculinas, causando assim escândalo da corte, enquanto a segunda, no seu famoso discurso para as tropas de Tilbury, em 1588, disse que “eu sei que tenho o corpo de uma mulher fraca, mas tenho o coração e o estômago de um rei, e de um rei da Inglaterra também”. Nenhuma delas, contudo, suscitou tanta controvérsia, ou exerceu poder tão grandioso, quanto uma monarca, cujas realidade e caráter permanecem obscurecidos por trás de camadas de oblação: Wu Zetian. Também conhecida como imperatriz Wu, Wu Hou, Wu Mei Niang, Mei-Niang, ou Wu Zhao, ela é uma personagem única na cultura chinesa, que passou à história como uma pessoa implacável, impiedosa, manipuladora e até assassina . Em 3000 anos, foi a única mulher na China a reivindicar para si o título de imperador por direito próprio, tendo exercido o poder de facto.

Ilustração do século XVII representando a imperatriz Wu Zetian. Nenhuma imagem contemporânea, porém, sobreviveu.

Nascida no ano de 624 d.C. em Wenshi County (província de Shanxi), Wu Mei pertencia a uma família de boas condições. Seu pai era Wu Shihuo, um chanceler da Dinastia Tang. Durante a infância, Wu recebera uma ótima educação, que incluía o estudo de certas disciplinas que não eram contempladas na instrução de uma garota naquele período. Também aprendeu a tocar instrumentos, compor poesias e a desenvolver uma boa oratória. Esse conhecimento, por sua vez, seria de muita utilidade para ela nos anos vindouros. Aos 13 anos, começava a chamar atenção de membros da corte por sua florescente beleza, sendo reivindicada como concubina do imperador Taizong. Dizem que sua mãe teria chorado bastante quando vieram buscar a filha. Wu a consolou, dizendo que estava fadada àquele destino. Embora sua família gozasse de alguma estabilidade financeira, não fazia parte da nobreza imperial. Por causa disso, Wu estava entre as concubinas de posição social inferior, sendo pouco mais do que uma mera serva. Porém, um dia ousou falar diretamente com o imperador, quando estavam sozinhos, a respeito da história chinesa. Taizong teria ficado surpreso com o fato de que aquela garota fosse capaz de ler e escrever. Fascinado pela beleza e sagacidade da jovem, o monarca a tirou da lavanderia, onde trabalhava, e fez dela sua secretária.

Na sua nova posição, Wu Mei estava constantemente envolvida em assuntos de Estado do mais alto nível e deve ter desempenhado bem seus deveres, uma vez que se tornou uma das favoritas de Taizong. A beleza da jovem atraiu a atenção também de outros membros importantes da corte, como o filho do imperador, Li Zhi, próximo na linha sucessória ao trono. Os dois teriam dado início já naquela época a um caso de amor ilícito, já que o príncipe era casado e Wu Mei era concubina de seu pai. Após a morte dele, em 649, conforme ditava a tradição para as concubinas sem filhos, Wu foi enviada para um templo budista, onde permaneceria até o fim de seus dias, não fosse a ação do príncipe Li Zhi, que se tornou imperador com o nome de Gaozong. Ele ordenou o resgate de Wu do templo em que estava confinada e a admitiu novamente na corte como a primeira de suas concubinas. Junto com a nova posição, ela atraiu a inveja de o despeito de muitos mulheres, entres as quais a imperatriz, Lady Wang, esposa de Gaozong, e da ex-primeira concubina do novo imperador, Xiao Shufei. Segundo a própria Wu, ambas mulheres teriam conspirado contra sua segurança, embora alguns historiadores argumentem que o início e o término das hostilidades foi provocado pela própria Wu.

Ilustração do imperador Taizong.

A imperatriz, porém, não havia dado ao marido filhos para sucederem-no ao trono, enquanto sua amante, Lady Xiao, havia gerado três crianças, sendo elas duas garotas e um garoto. Em 652, Wu deu à luz seu primeiro filho com Gaozong, batizado de Li Hong. Um ano depois. veio ao mundo outro filho, Li Xian. Contudo, nenhuma dessas duas crianças podiam ser consideradas ameaças para as pretensões de Lady Wang ou Lady Xiao, uma vez que o imperador já havia escolhido seu sucessor na pessoa do primo de sua esposa, Li Zhong, filho do chanceler Liu Shi, que era tio da imperatriz. Por outro lado, esse fato não impediu que as duas mulheres nutrissem para com Wu Mei um profundo ressentimento, especialmente após ela der dado à luz sucessivamente a dois filhos do imperador. Em 654, nasceu uma filha, que morreu pouco depois. A criança teria sido estrangulada ainda em seu berço. Wu não teve qualquer escrúpulo ao acusar a imperatriz de assassina, já que esta fora a última pessoa vista no quarto da criança. Como não tinha um álibi, Lady Wang foi considerada culpada dos crimes que lhe foram imputados, incluindo o de feitiçaria. O imperador Gaozong então se divorciou dela e a expulsou do palácio junto com sua sogra, considerada cúmplice da filha. Quando a Lady Xiao, que também foram implicada no crime, esta foi punida com o exílio.

O assassinato da filha recém-nascida de Wu, porém, ainda gera muitas controvérsias entre os historiadores. Alguns argumentam que a responsável pelo assassinato da criança foi ninguém menos que sua própria mãe, com o intuito de imputar a imperatriz pelo crime. Essa talvez seja a acusação mais infame já feita à Wu Mei. Infelizmente, não existem provas concretas de quem tenha sido o assassino ou assassina. Na época, foi apenas a palavra da concubina contra a da imperatriz. Por outro lado, a situação de Wu melhorou consideravelmente após a queda de sua rival. Em consequência da desgraça de Lady Wang, seu tio, o chanceler Liu Shi foi demitido do seu cargo e seu filho, Li Zhong, removido da linha sucessória. Com suas duas principais rivais fora do caminho, Wu Mei foi elevada à posição de primeira esposa de Gaozong e imperatriz consorte da China. Seu filhos, Li Hong e Li Xian, foram declarados herdeiros de seu pai. Pouco depois, tanto Lady Wang quanto Lady Xiao foram assassinadas em seu exílio, o que torna o caso bastante suspeito. Teria a nova imperatriz ordenado a morte das duas mulheres? A questão ainda paira no ar. Em público, ela desempenhava o papel de esposa submissa do imperador, mas, nos bastidores, ficou claro que ela governava através do marido.

Ilustração do imperador Gaozong.

Com efeito, esse é o início da lenda negra que se firmaria no imaginário coletivo sobre a imperatriz Wu. Muitos dos historiadores que escreveram a respeito de seu reinado pessoal, anos mais tarde, seguiram com zelo a cartilha ditada por seus antecessores, que não toleravam uma mulher que, com o tempo, passou a exercer o poder por direito próprio. Esses historiadores retratam Wu como uma pessoa impiedosa e sanguinária, capaz de assassinar a própria filha para chegar ao trono. Contudo, Wu Zetian, como tantas outras em sua posição, tem sido alvo de constante misoginia. Não seria equivocado dizer que ela se constituía numa ameaça ao patriarcado chinês. Muitos políticos e historiadores chegaram a afirmar que ela havia perturbado o equilíbrio da suposta ordem natural, ao assumir uma função reservada aos homens. Mesmo cataclismos naturais lhe eram atribuídos, interpretados como mau presságio. De acordo com o historiador N. Henry Rothschild, “a mensagem era clara: uma mulher em uma posição de poder supremo era uma abominação, uma aberração da ordem natural e humana”. Para os habitantes da China Antiga, os presságios eram considerados bastante importantes e desempenhavam um papel relevante na política durante o reinado da Dinastia Tang.

Em 683 d.C., quando Wu começou a governar de facto, um erudito confuciano afirmou que a natureza havia sido revertida por causa de uma “mulher usurpadora” e “em todas as prefeituras do império, as galinhas foram transformadas em galo, ou meio mudadas” (apud Rothschild, p. 108). Após um terremoto, quando uma montanha surgiu no horizonte, isso também foi interpretado como uma revolta da natureza contra o reinado de Wu. A imperatriz, por sua vez, interpretou o evento sob um diferente prisma: ela afirmou que aquela forma de relevo era na verdade um bom presságio e a relacionou a Sumeru, a montanha budista do paraíso. Logo, aquela massa rochosa foi batizada de Monte Felicidade e a escalou, para marcar o início do seu reinado. Enquanto uns congratulavam a imperatriz como uma favorecida pelos deuses, outros tinham uma opinião totalmente diversa. Um de seus ministros escreveu o seguinte:

Sua Majestade, uma governante do sexo feminino, ocupou indevidamente uma posição masculina, o que inverteu e transformou o duro em macio, portanto, as emanações da Terra serão obstruídas e separadas. Esta montanha, nascida da repentina convulsão da Terra, representa uma calamidade. Sua Majestade pode toma-la como “Monte Felicidade”, mas seus súditos sentem que não há nada a comemorar. Para responder adequadamente à censura do Céu, é apropriado que ela leve uma existência tranquila de viúva e cultive a virtude. Caso contrário, receio que outros desastres se sucederão (apud Rothschild, p. 108)

Wu, por sua vez, levou em consideração a opinião de seu ministro. Mas, conforme afirma Rothschild, “sem intenção alguma de levar uma existência tranquila de viúva, ela rapidamente exilou o homem para o sul pantanoso e cheio de doenças” (p. 109). A imperatriz podia calar a voz de um homem, mas não do conjunto de descontentes. Esses relatos hostis sob seu reinado foram então alçados à categoria dos fatos e aceitos como verdade por muitas gerações a posteriori. Mas como Wu sucedeu seus maridos no filho no trono e se tornou uma governante poderosa, sendo, desse modo, alvo da desaprovação do patriarcado chinês? É o que veremos na sequência dessa matéria.

Leia a segunda parte clicando aqui!

Bibliografia:

CONLIFE, Ciaran. Wu Zetian, the female emperor of China. 2014. – Acesso em 19 de março de 2017.

DASH, Mike. The Demonization of Empress Wu. 2012 – Acesso em 19 de março de 2017.

MARK, Emily. Wu Zetian. 2016. – Acesso em 19 de março de 2017.

3 comentários sobre “Wu Zetian: a primeira (e única) mulher a se tornar imperador da China – Parte I

  1. Que texto excelente. É sempre bom descobrir uma mulher quebrando parâmetros, principalmente quando isso foi há anos e anos atrás. Quero muito ver a continuação 🙂

    Curtir

  2. Corajosa. Apesar de haver muita especulação em torno dela, como se fosse uma malvada e disposta a tudo pelo poder, faz-me desconfiar muito. Até hoje mulheres são meio que ameaçadas quando têm poder. Incomoda.

    Curtir

Deixe um comentário