O suplício dos corpos: execuções em Inglaterra e França no antigo regime – Parte I

Por: Renato Drummond Tapioca Netp

Em abril de 1786 uma grande multidão de parisienses se reuniu no pátio da Salpêtrière, para onde todos aqueles que fossem acusados ou suspeitos de perturbar a ordem da cidade de Paris eram enviados. Na ocasião mencionada, o povo se dirigia àquele prédio, construído no século XVII, para presenciar o castigo que seria aplicado a Jeanne de La Motte, declarada pelo parlamento e pelo rei como culpada na trapaça que ficaria conhecida no século XIX, graças à obra do romancista Alexandre Dumas, como “o caso do colar de diamantes”. Jeanne foi acorrentada em um poste, com as costas nuas, para ser açoitada por seus crimes. O executor da tarefa, o carrasco Samson, lhe aplicou vários golpes com um chicote cujas cerdas estavam recheadas de pregos. À medida que os golpes atingiam o corpo da vítima, deixavam cortes profundos na sua carne. Terminada essa etapa, ela seria marcada com um ferro em brasa contendo a letra “V” de voleuse (ladra). Jeanne, que até então permanecia firme, se desesperou ao ver qual seria o próximo castigo e se agitou descontroladamente em suas correntes. Como não permanecia imóvel, o ferro lhe atingiu no busto e escorregou até a região do ventre, deixando uma marca grotesca no seu corpo. Depois disso, Samson gritava em alto e bom som para toda a multidão: “que assim pereçam os inimigos de Luís XVI”.

O castigo de Jeanne de La Motte

O castigo de Jeanne de La Motte

O exemplo que acaba de ser citado se enquadra no que Michel Foucault chamou no primeiro capítulo de sua obra “Vigiar e Punir” (1975) como suplício público, quando o corpo do condenado era violado na presença popular para mostrar a todos qual era o destino daqueles que desafiassem a ordem vigente. Esse tipo de punição era mais característico dos antigos regimes monárquicos, especialmente na França, governada por um rei absolutista até a revolução de 1789. No capítulo “O corpo dos condenados”, Foucault oferece ao leitor o exemplo do suplício de Robert Damiens, condenado em 1757 pela tentativa de assassinato de Luís XV, avô de Luís XVI. A pena de Robert foi muito mais severa que a de Jeanne de La Motte, pois foi banhando em chumbo derretido e óleo fervente, para depois ter cada parte do seu corpo atada a cavalos que, ao som de um tiro, correram cada qual para uma direção, esquartejando a vítima. No início do século XIX, “com inúmeros projetos de reformas, nova teoria da lei e do crime, nova jurisdição moral ou política do direito de punir, abolição das antigas ordenanças, supressão dos costumes” (1987, p. 12), os suplícios foram desaparecendo enquanto método de punição, “a despeito de algumas grandes fogueiras” que ainda eram mantidas.

O que teria contribuído então para o gradual desparecimento do suplício na virada do século XVIII para o XIX? Para Michel Foucault, existe uma tendência superficial em considerar a “humanização” dos castigos como justificativa para tanto. Porém, a reposta para essa questão talvez consista no fato de que o corpo deixou de ser o alvo principal da repressão final, dando lugar à “alma” do indivíduo. O espetáculo do processo punitivo é assim suprimido.

O cerimonial da pena vai sendo obliterado e passa a ser apenas um novo ato de procedimento ou de administração. […] A punição pouco a pouco deixou de ser uma cena. E tudo o que pudesse implicar de espetáculo desde então terá um cunho negativo; e como as funções da cerimônia penal deixavam pouco a pouco de ser compreendidas, ficou a suspeita de que tal rito que dava um “fecho” ao crime mantinha com ele afinidades espúrias: igualando-o, ou mesmo ultrapassando-o em selvageria, acostumando os espectadores a uma ferocidade de que todos queriam vê-los afastados, mostrando-lhes a frequência dos crimes, fazendo o carrasco se parecerem com criminoso, os juízes aos assassinos, invertendo no último momento os papéis, fazendo do supliciado um objeto de piedade e de admiração (FOUCAULT, 1987, p. 13).

Na primeira metade do século XIX, as potências europeias estavam mergulhadas em um processo de reconfiguração política e econômica após a Revolução Francesa e o Império Napoleônico. Essa reorganização afetou inclusive os padrões de sociabilidade e a rejeição de tudo aquilo que pudesse ser considerado bárbaro ou selvagem, incluindo as práticas punitivas aplicadas aos presos no século passado. A execução pública passa a ser “vista então como uma fornalha em que se acende a violência”.

Execução pela guilhotina

Execução pela guilhotina

No antigo regime das monarquias europeias, centrado na figura de um rei autocrático, cabia ao soberano o direito de vida ou morte sobre os seus súditos. Enquanto na Inglaterra o sistema penal era marcado por uma maior rigidez, na França a reclusão ordenada segundo a vontade régia tinha por finalidade conduzir o indivíduo ao arrependimento pela privação de sua liberdade. Através da chamada lettre de cachet, o monarca francês poderia conceder a uma determinada comunidade o direito de organizar seu próprio policiamento, prestando assim um serviço à coroa. Durante a fase do Terror da Revolução Francesa, milhares de pessoas foram executadas em praça pública em prol da segurança nacional, incluindo o rei e a rainha da França, Luís XVI e Maria Antonieta, além dos próprios instigadores da Revolução, Danton e Robespierre. Essa fase sangrenta deixou uma marca profunda no imaginário popular, relacionada ao medo gerado pela desordem civil instaurada com a queda do regime absolutista e ascensão da primeira república.

O instrumento utilizado para ceifar vidas durante aquele período era a guilhotina, sugerida pelo médico francês Joseph-Ignace Guillotin, por ser um método de execução mais “humano” do que o enforcamento ou o uso do machado. Estes últimos meios poderiam prolongar a agonia da vítima por muitas horas. A decapitação pelo machado, por exemplo, era muito comum na Inglaterra durante o século XVI e XVII. De acordo com G. R. Elton, foram necessários nada menos do que três golpes de machado para seccionar a cabeça de Mary Stuart, em 1587. Após o primeiro golpe, que atingiu o lado do crânio, a rainha da Escócia ainda estava viva. Dessa forma, a guilhotina oferecia, com sua lâmina losangular, uma execução mais rápida e um corte certeiro, abreviando o suplício do condenado a uma fração de segundos. Comparada à França, as práticas punitivas na Inglaterra moderna eram muito mais severas, especialmente durante as guerras de religião no século XVI e a guerra civil no século XVII.

A execução de Mary Stuart

A execução de Mary Stuart

Num levantamento de execuções de membros da realeza, nobreza e altos funcionários do estado, do filósofo Thomas More (1535) até o rei Carlos I (1649), a única vítima que teve uma pena mais “humana” foi Ana Bolena, primeira rainha decapitada da história inglesa. Para a morte de sua segunda esposa, condenada em 1536 por traição e adultério, o rei Henrique VIII designou um espadachim francês, que separou a cabeça da soberana com apenas um golpe rápido e limpo de espada, diante de uma plateia de alguns espectadores, parados na Torre de Londres, espécie de palácio, tesouraria, fortaleza e prisão. Assim como a Bastilha na França, a Torre era um símbolo da soberania da monarquia inglesa e do medo que inspirava nas pessoas. Por outro lado, os membros das classes mais subalternas não tinham o mesmo destino: “o condenado era arrastado sobre uma grade (para evitar que a cabeça arrebentasse contra o pavimento), seu ventre aberto, as entranhas arrancadas às pressas, para que ele tivesse tempo de as ver com seus próprios olhos ser lançadas ao fogo” (FOUCAULT, 1987, p. 16). Por fim, era decapitado e os membros do seu corpo expostos em postes pela cidade.

Confira a segunda parte!

Referências Bibliográficas:

CARLYLE, Thomas. História da Revolução Francesa. – São Paulo: Melhoramentos, 1961.

ELTON, G. R. England under The Tudors. – London: The Folio Society, 1997.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. – Petrópolis: Vozes, 1987.

GAULIA, Cristina Tereza.  Vigiar e Punir – História da violência nas prisões. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 16, n. 62, p. 37 – 64, abr. – set. 2013.

HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções, 1789-1848. Tradução de Maria Tereza Teixeira e Marcos Penchel. 32ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

STONE, Lawrence. Causas da Revolução Inglesa 1529-1642. Tradução de Modesto Florenzano. – Bauru, SP: EDUSC, 2000.

4 comentários sobre “O suplício dos corpos: execuções em Inglaterra e França no antigo regime – Parte I

  1. Sempre fui atraida pelas historias inglesas e francesas dos períodos medieval e renascentista.
    Gostei muito do artigo e muitos dos detalhes sobre os suplícios e métodos de execução eu já conhecia. Existem na Europa diversos “museus da tortura” que mostram diversos aparelhos da época para tais fins.

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    • Olá! Obrigado pelo interesse!
      O livro está à venda nas principais livrarias de Portugal. Quem mora no Brasil, pode encomendar um exemplar pelo site da Bertrnad portuguesa ou pela Livraria Cultura brasileira 😉
      Abraços!

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