O último ato de uma rainha: a execução de Mary Stuart

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Castelo de Fotheringhay, 7 de fevereiro de 1587: Mary Stuart, a rainha deposta da Escócia, recebeu uma visita dos Lordes Sherewsbury e Kent. Acompanhada de um grande número de criados ela recepcionou a comitiva que vinha lhe trazer uma notícia fatal: sua execução ocorreria na manhã do dia seguinte. Com uma compostura régia, Mary aceitou sua sentença. “Não achei que a rainha minha irmã fosse consentir com minha morte, pois não estou sujeita à sua lei nem à sua jurisdição”, disse a condenada. “Mas vendo que esse é seu prazer, a morte me será muitíssimo bem-vinda: nem é alma digna das elevadíssimas e eternas alegrias do céu a alma cujo corpo não pode suportar o golpe do carrasco”. Enquanto Sherewsbury, que foi carcereiro de Mary por vários anos, ficou aparentemente triste com o destino daquela mulher, o conde de Kent acrescentou de forma impiedosa: “sua vida será a morte de nossa religião, como, por outro lado, sua morte será a vida da nossa crença”. A rainha deposta permaneceu calma e sob controle da situação, consolando seus criados. Ao menos ela podia encontrar uma satisfação na sua morte iminente, pois estava claro que o catolicismo da rainha escocesa era considerado uma ameaça para os ingleses. Depois daquelas palavras, Kent deu a Mary a oportunidade de se redimir publicamente através de sua fé, entregando-se ao marchado do carrasco não como monarca, mas como uma verdadeira mártir cristã.

Retrato em miniatura de Mary Stuart, por Nicholas Hilliard (1578).

Retrato em miniatura de Mary Stuart, por Nicholas Hilliard (1578).

As circunstâncias que levaram Mary Stuart a subir ao patíbulo na manhã do dia 8 de fevereiro são por demais conhecidas. Ela tinha sido acusada de conspirar contra a vida da “rainha minha irmã”, Elizabeth I. Desde que Mary se refugiou na Inglaterra, em 1568, rumores de um possível atentado contra a soberana inglesa para colocar sua prima trono se tornaram correntes. O mais famoso deles envolvia um dos pares de maior título do reino, o duque de Norfolk, que acabou executado por alta-traição em 1572. Os ministros compartilhavam da ideia de que enquanto a rainha deposta da Escócia vivesse sob a proteção do governo inglês, ela seria um foco de conspirações e intrigas. Apesar de não sentir simpatia pela pessoa da prima, Elizabeth não podia simplesmente expulsa-la do reino. Envia-la para a França ou a Espanha também estava fora de questão, uma vez que Mary poderia ser um instrumento perfeito nas mãos das potências rivais. A solução encontrada foi mantê-la cativa na Inglaterra, embora os custos de tal decisão acabassem se mostrando pesados demais. Como boa parte dos súditos ainda se mostravam apegados aos dogmas católicos, Mary Stuart se constituía numa boa substituta para a protestante Elizabeth, além de ter sangue real Tudor correndo nas veias.

Enquanto a soberana escocesa vagava de uma residência a outra nos seus 19 anos de cativeiro inglês, sua família na França, os Guise, juntamente com o embaixador espanhol, Mendonza, conspiravam para liberta-la e depois coroa-la rainha da Inglaterra. Usando como intermediário um jovem ex-criado de Mary Stuart, conhecido como Antony Babington, foi arquitetada uma trama para assassinar Elizabeth. Em 6 de julho de 1586, uma carta chegou às mãos Mary, dando-a a conhecer o plano e pedindo o seu consentimento. O que os conspiradores falharam em perceber, contudo, foi que esse correio estava sendo interceptado pelo Mestre espião de Elizabeth I, Francis Walsingham, que decifrou o código usado na correspondência. Além disso, outro dos participantes da conjura, um certo padre Ballard, havia sido preso e feito alegações comprometedoras sobre Babington e o esquema. Mary Stuart, por sua vez, permanecia ignorante das ações do governo e numa atitude imprudente consentiu com o plano. No dia 17, ela teria respondido a carta, dando inclusive vários concelhos de como a “tarefa” deveria ser executa. Agora Walsingham tinha provas suficientes para acusa-la de traição e impelir Elizabeth a tomar uma medida contra a rainha cativa.

Retrato em miniatura de Elizabeth I, por Nicholas Hilliard (1577).

Retrato em miniatura de Elizabeth I, por Nicholas Hilliard (1577).

Em outubro daquele ano, foi estabelecida uma comissão especial para julgar a rainha da Escócia. Os 36 membros que compunham a comissão se reuniram no dia 12 em Fotheringhay e esperavam convencer Mary Stuart a comparecer pessoalmente ao julgamento. Apesar disso, pairava no ar uma questão: estaria a ré, uma soberana estrangeira, sujeita às leis do país? Mary Stuart, por sua vez, adotou essa indagação como defesa: “pareceu-me estranho que a rainha me ordenasse, como súdita, a submeter-me a um julgamento. Sou uma rainha absoluta, e nada farei que possa ser prejudicial à Majestade Real”. Não obstante, ela se queixava da falta de imparcialidade que encontraria entre seus algozes e a falta de conselheiros confiáveis para lhe guiar nessa situação, pois “as leis e estatutos da Inglaterra são para mim totalmente desconhecidos”. Segundo Jane Dunn, autora do livro “Elizabeth e Mary” (2004, p. 446), a soberana inglesa estava disposta a perdoar sua prima, desde que ela reconhecesse sua culpabilidade, o que a acusada decididamente não estava disposta a fazer. “A reputação de Elizabeth como rainha justa”, esclarece Dunn, “exigia que Mary abandonasse a arrogante postura de inocência ultrajada, a insistência em que era perseguida simplesmente por sua fé” (ibid. p. 445).

Com efeito, Mary continuava a argumentar contra a legalidade do julgamento. Quando os membros da comissão ameaçaram dar prosseguimento ao inquérito sem a presença dela, esta respondeu que “não era súdita, e preferia morrer mil mortes a reconhecer-se como súdita”. De qualquer forma, sua resistência não foi o suficiente. Ela finalmente concordou em comparecer perante o tribunal na manhã do dia 15 de outubro. O palco para este drama foi meticulosamente armado em Fotheringhay:

Em uma plataforma erguida no alto da sala, instalou-se a cadeira de Estado sob um dossel de Estado. Estes representavam a presença de Elizabeth, rainha da Inglaterra, e permaneceu vazia até o fim. Uma cadeira menor, posta mais próxima do centro da sala, fora designada para Mary, rainha dos escoceses. Os membros da comissão acomodaram-se mais embaixo, de cada lado do longo aposento. Mary contestou a posição inferior da sua cadeira: “sou uma rainha por direito de nascença e meu lugar deveria ser sob o dossel de Estado”, consta que teria dito, apontando o trono vazio destinado à ausente rainha da Inglaterra (DUNN, 2004, p. 448).

As acusações foram lidas em voz alta e a cada uma delas a ré defendia-se de forma eloquente, mesmo das provas referentes à conspiração Babington, como ficou conhecida. Uma vez que as cartas originais não foram apresentadas, as cópias usadas no inquérito poderiam ser fruto de falsificação. Porém, dois secretários de Mary, Nau e Curle, cujas confissões foram registradas independentes uma da outra, confirmaram que a correspondência interceptada de fato havia sido escrita pela sua senhora.

Decidida a atuar como advogada de si própria, Mary protestou contra as acusações, salientando que não reconhecia a autoridade de Elizabeth sobre sua pessoa e tentando levar o rumo do processo para a questão religiosa, pois “minha religião tem sido meu único consolo e esperança em todas as minhas aflições, e pela promoção dela eu daria alegremente o melhor do meu sangue”. O julgamento foi então suspenso e os membros da comissão se reuniram novamente na Câmara Estrelada, em Westminster, no dia 25 de outubro. Por exceção de apenas um voto, declarou-se Mary culpada de ter “tramado e imaginado neste reino da Inglaterra diversas questões dirigidas à lesão, à morte e à destruição da real pessoa de nossa senhora soberana a rainha”. A própria acusada sequer foi imediatamente informada da sentença de morte que havia sido declarada contra ela em Londres. Em 19 de novembro, lorde Buckhurst chegou a Fotheringhay e deu a notícia a ela, apesar de Elizabeth ainda não ter consentido na execução. Após o veredito, a rainha da Escócia foi privada do seu dossel de Estado, um símbolo do seu status real. Mesmo diante dessa desonra, cujo objetivo era “significar que eu era uma mulher morta, privada das honras e dignidade de uma rainha”, ela encontrou conforto na religião, decidida como estava a “rezar com Ester do que desempenhar o papel de Judite”.

Mary Stuart é conduzida ao patíbulo, por Pierre-Henri Révoil.

Mary Stuart é conduzida ao patíbulo, (por Pierre-Henri Révoil).

Enquanto isso, Elizabeth I permanecia uma pilha de nervos. Uma vez que as relações diplomáticas com a Espanha haviam cessado a muito tempo, a execução de Mary Stuart poderia contrair a inimizade da França e da Escócia, deixando a Inglaterra praticamente isolada na política intercontinental. O fardo da responsabilidade pesava demais sobre a rainha inglesa. Seu senso de inviolabilidade do corpo do monarca estava falando mais alto, pois, de acordo com a crença da época, uma rainha ungida por Deus estava acima da jurisdição dos homens. Se consentisse na execução da prima, Elizabeth estaria não só quebrando esse tabu como também mostrando que sua própria Majestade Real não era plena. Da França, Henrique III enviou seu embaixador Bellièvre para pedir indulgência, mas a soberana replicou que “é impossível salvar minha própria vida se eu preservar a da rainha dos escoceses”. Porém, “se vós embaixadores puderdes indiciar qualquer meio pelo qual eu possa fazê-lo, coerente com minha segurança, ficarei em enorme dívida convosco”. Durante as festividades de natal, uma carta de Mary chegou para a sua prima, onde ela dizia que “considero-me feliz porque minha morte vai preceder a perseguição que prevejo ameaçar esta ilha, onde Deus não é verdadeiramente temido e reverenciado, mas a vaidade e a diplomacia mundanas a tudo dirigem”.

Estando sob pressão de todos os lados, tanto dos ministros como por parte do povo, Elizabeth finalmente assinou a sentença de sua prima no dia 1 de fevereiro. Pouco depois, se arrependeu e solicitou o documento de volta, mas já era tarde demais. Dois dias depois, o escrivão do conselho, Beale, partiu para Fotheringhay com a ordem de execução. Após saber que seria decapitada na manhã do dia 8, Mary Stuart não dormiu, preferindo ficar em oração até o momento em que seria escoltada rumo ao patíbulo. Às 6 da madrugada, suas damas começam a lhe preparar para o último ato do drama que foi sua vida. Cada peça de roupa foi meticulosamente escolhida: um vestido de veludo carmesim escuro, com corpete de seda negra, gola branca encanudada e mangas amplas e pendentes. Sobre o traje, um manto de cetim negro, e na cabeça um véu de viúva. Embaixo de todo esse vestuário, uma túnica de tafetá vermelho, a cor do martírio católico. Quando deu 8 horas, vieram finalmente busca-la. Escoltada por duas de suas damas, a vítima carregava numa das mãos a bíblia e na outra um terço. Nenhuma condenada jamais se preparou tanto esmero para o seu fim como ela o fez. Quando entrasse na sala onde estava armado o patíbulo, não queria os espectadores tivessem qualquer dúvida quanto à sua dignidade real e a posição que ocupava neste mundo.

Aquarela holandesa contemporânea, retratando a execução de Mary Stuart, em 8 de fevereiro de 1587.

Aquarela holandesa contemporânea, retratando a execução de Mary Stuart, em 8 de fevereiro de 1587.

O cenário para a execução de Mary Stuart tinha sido preparado às pressas entre 7 e 8 de fevereiro. Um pequeno palanque, com a altura de dois pés, foi erguido. No centro, coberto por pano preto, colocou-se um tamborete com uma almofada. Encostados na parede, estavam o carrasco e seu ajudante. É de Stefan Zweig, um dos principais biógrafos de Mary, a narrativa dos acontecimentos a seguir:

Maria penetra serenamente na sala. Rainha desde os primeiros dias de sua vida, ela aprendeu há muito a conservar uma atitude real e tão elevada arte não a abandona, mesmo neste momento cruel. De cabeça erguida, sobe os dois degraus do cadafalso. Foi assim que, aos quinze anos, subiu ao trono da França, foi assim que, em Reims, avançou para o altar. Seria assim que teria subido ao trono da Inglaterra, se outras estrelas tivessem presidido ao seu destino. Ajoelhara junto do rei da França, depois junto do rei da Escócia, para receber a bênção do padre, com a mesma humildade e o mesmo orgulho que hoje espera a bênção da morte. É com indiferença que ouve o secretário reler a sentença. E as suas feições acusam uma feição tão amável, quase feliz, que Wingfield, um adversário notável pela sua ferocidade, não pode deixar de assinalar, no relatório que faz a Cecil, que ela acolheu a leitura da sua sentença de morte como se se tratasse de uma mercê (ZWEIG, 1969, p. 378).

As vestes negras são finalmente removidas, revelando por baixo os trajes de peregrina. Depois de ter perdoado o carrasco pelo que ele faria, ela finalmente se ajoelhou diante do cepo, deixando seu pescoço livre para a lâmina do machado. Enquanto murmurava continuamente a frase “In manus tuas, Domine” (em vossas mãos, ó Deus), o primeiro golpe caiu, errando o alvo e cortando o lado do crânio. Ela ainda estava viva quando o segundo golpe desceu afundando a lâmina do machado até metade do seu pescoço. No terceiro, a cabeça da rainha foi completamente decepada. “Assim pereçam os inimigos da rainha Elizabeth”, gritou o diácono de Peterbourough. Quando o carrasco levantou a cabeça da vítima, ela se desprendeu da peruca e caiu no chão, oferecendo uma cena grotesca para os espectadores. Imediatamente, percebeu-se que ainda existia vida no corpo decapitado daquela mulher. Na verdade, era o seu cãozinho de estimação, um terrier Skye, que se mexia sob as saias da dona e se recusava abandona-la. O martírio da rainha da Escócia estava, enfim, consumado. Com sua fé e coragem, Mary Stuart transformou sua derrota em vitória. Morria a mulher e nascia o mito da soberana romântica que lutou pelo seu amor e liberdade na mesma proporção com que brigou pela sua coroa.

Cena da execução de Mary Stuart no filme Elizabeth – a era de ouro (2007):

Referências Bibliográficas:

DUNN, Jane. Elizabeth e Mary: primas, rivais, rainhas. Tradução de Alda Porto. – Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

FRASER, Antonia. Mary queen of Scots. – New York: Delta, 2001.

ZWEIG, Stefan. Maria Stuart. Tradução de Alice Ogando. 12ª edição. Porto: Livraria Civilização Editora, 1969.

17 comentários sobre “O último ato de uma rainha: a execução de Mary Stuart

  1. Parabéns, renato! Seus textos são todos incríveis, adoro esse site!

    Sobre a história, muito triste!
    Acredito que Mary teria sido uma tremenda rainha se não tivesse rodeada por tiranos. Foi uma mulher honrosa, religiosa, amável e carismática, com uma vida injusta que não merecia!

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  2. Ela tinha todo o direito ao trono da Inglaterra, nasceu para ser a Rainha seu único erro foi ter sido rainha da frança aos 15 anos, se nessa idade ela ja focasse conquistar a inglaterra talvez teria mais chance porque o poder de Elizabeth era menor.

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  3. É estranho que os pesquisadores tenham feito confusão entre as duas rainhas Mary, conforme se vê nas fotos do artigo. Maria I era rainha da Inglaterra antes de Elizabeth I e morreu doente. Era filha de Henrique VIII e Catarina de Aragão. Mary Stuart era rainha da Escócia, viveu e casou com o príncipe Francis da França e era filha de Jaime V e Maria Guisé.

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    • Olá, Leontina. A qual foto do post você se refere? O texto é sobre a execução de Mary Stuart e para ilustra-lo foram usados retratos contemporâneos e póstumos da soberana, bem como uma miniatura de Elizabeth I. Além disso, Mary também foi a primeira de seu nome a governar a Escócia, assim como sua prima Mary I Tudor na Inglaterra!

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