A rainha do romance: as representações midiáticas de Mary Stuart no século XXI

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

“Em meu fim está meu começo”. Com essa frase, Mary Stuart, rainha da Escócia praticamente desde o nascimento (1542), se despedia da vida. Decapitada em 8 de fevereiro de 1587, ela jamais teria imaginado como aquelas palavras resumiriam com tamanha força a sua existência post-mortem. Poucas rainhas reinantes da Idade Moderna foram tão celebradas pela literatura como ela. A estória de uma mulher apaixonada, que sacrificou sua coroa para viver um amor impossível já serviu de base para a criação de várias obras de ficção, desde os romances escritos por Alexandre Dumas, a filmes como “Mary Queen of Scots”, de 1971. Mary Stuart renasceu então como uma trágica heroína dos tempos modernos, conquistando assim gerações de entusiastas, dispostos a defende-la das acusações feitas por seus igualmente fervorosos detratores. No século XXI, o mito da rainha martirizada pela inveja de outra rainha continua bastante aceso no imaginário popular, graças às recentes produções midiáticas, que usam sua trajetória como pano de fundo para a criação de uma trama original, com uma abordagem e apelos bastante contemporâneos. Por meio da magia do cinema, Mary Stuart transcendeu aos olhos do público como uma personagem romântica e imperfeita e, portanto, mais próxima de nós.

A partir da década de 1960, quando o objeto de estudo “mulher” se tornou cada vez mais recorrente entre as ciências sociais, observou-se um verdadeiro resgate de certas personalidades femininas, bastante estereotipadas em tempos passados, por parte dos historiadores. Entre elas, Mary Stuart. Ela já foi abordada das formas mais contraditórias possíveis, ora como assassina, ora como mártir, intriguista ou santa. A quantidade de materiais e fontes que a retratam destas formas é tão abundante, que se torna quase impossível chegar a uma conclusão comum. Esse mistério que ronda a figura da rainha da Escócia é o fator condicionante de sua celebridade nos dias de hoje. Foco de uma série de biografias, das quais as mais conhecidas foram as escritas por Stefan Zweig (1935) e Antonia Fraser (1969), a soberana também fez sua entrada triunfal nos palcos por meio de produções teatrais como “Maria Stuart”, peça em cinco atos escrita por Friedrich von Schiller (1801). As representações culturais da rainha da Escócia ultrapassaram assim as barreiras do tempo, sob os mais diversos olhares. Agora, ela ressurge na pele de uma adolescente impetuosa, interpretada pela atriz Adelaide Kane na série de televisão da CW, “Reign” (2013).

Mary Stuart, rainha da Escócia, por artista desconhecido.

Mary Stuart, rainha da Escócia, por artista desconhecido.

Ambientada na França do reinado de Henrique II (1547-1559), “Reign” povoou a mente do telespectador com personagens como Catarina de Medicis (Megan Follows) e o Delfim Francisco (Toby Regno). A produção, contudo, não se mantém fiel aos fatos conhecidos, o que provocou a ira de muitos admiradores de Mary Stuart e especialistas no período em questão. Por outro lado, a série também conseguiu cativar uma considerável quantidade de telespectadores, chamando a atenção destes para a problemática envolvida no contexto da obra, especialmente para a protagonista dela. Em todo caso, é bom lembrar que a ideia de representação e adaptação não contempla a veracidade histórica daquilo que é narrado, e sim a sua verossimilhança, ou seja, uma forma de captar o real na qual as possibilidades de criação são muitos maiores do que aquelas permitidas à história. Reconstruir o passado tal como ele ocorreu é impossível. Se nem mesmo um historiador, cercado de todas as fontes possíveis, consegue fazê-lo, que dirá então um diretor ou roteirista, que lida com um amplo mercado de telespectadores, mais interessados em consumir estórias de amor e intriga do que em produções fieis aos fatos, que na maioria das vezes tendem a ser enfadonhas?!

Costumamos, às vezes, ser exigentes demais com filmes e séries que abordam determinados temas da história e nos esquecemos de que o diretor da obra tem licença poética para adaptar o enredo da forma como melhor lhe convém. Sendo assim, procurar fidelidade aos fatos numa produção desse tipo é uma tarefa bastante infrutífera. O que interessa, nesse caso, é a leitura contemporânea sobre o assunto que este ou aquele longa-metragem faz, uma vez que toda obra fala muito mais da época em que foi concebida. Vistos sob esse viés, os filmes podem ser um recurso interessante para o estudo da história, desde que não procuremos nesse tipo de produção a adaptação fidedigna dos fatos. Sendo assim, a mensagem por trás de uma série como “Reign” só pode ser entendida se analisada à luz dos tempos atuais, e não do século XVI, como muitos costumam fazer. Acredito que a cultura pop contribuiu de muitas formas para esse resgate de certas personalidades do passado, revestindo-as de uma roupagem nova e mais representativa dos tempos modernos, como Ana Bolena e Maria Antonieta. Foi o que aconteceu, também, com Mary Stuart. Nem santa nem demônio, ela hoje é o uma personagem imperfeita, que traduz muitos dos nossos sentimentos e aspirações.

Adelaide Kane como Mary Stuart na série de televisão da CW, "Reign" (2013).

Adelaide Kane como Mary Stuart na série de televisão da CW, “Reign” (2013).

Com efeito, talvez seja por isso que as pessoas ainda se identificam com a estória de Mary, pois ela consegue captar, como poucas rainhas, os desejos inerentes à condição humana. Na opinião do seu principal biógrafo, Stefan Zweig:

De fato, o caráter de Mary Stuart está longe de ser assim tão misterioso: não lhe falta unidade senão nas suas manifestações exteriores; interiormente, é retilíneo e claro, do princípio ao fim. Mary Stuart pertence a este tipo de mulheres muito raras e atraentes cuja capacidade de vida real está concentrada num espaço de tempo muito curto, que desabrocham duma forma efêmera, mas poderosa, que não consomem a sua vida ao longo de toda a existência, mas num quadro restrito e ardente duma única paixão (ZWEIG, 1969, p. 8).

Essa visão também foi corroborada pela recente pesquisa feminista, que contribuiu muito para a interpretação de Mary Stuart não como uma mártir católica ou assassina, mas como uma pessoa corajosa e disposta a lutar pela sua felicidade, independente dos empecilhos que a função de monarca reinante lhe colocou no caminho. Por colocar a mulher na frente da soberana, Mary pagou um preço muito caro e ainda continua arcando com as consequências disso.

Em “Elizabeth – The Golden Age” (2007), Mary Stuart (interpretada por Samantha Morton) é retratada como uma mulher vingativa e disposta a derrubar sua prima do trono a qualquer custo. Esta talvez seja umas das abordagens mais cruéis já feitas da rainha da Escócia, o que denota esse contraste de interpretações que ainda existe sobre ela. Outras produções do cinema, porém, trataram a personagem com muito mais cuidado, ressaltando seu apelo romântico e caráter destemido. É o caso do filme “Mary Queen of Scots”, de 2013. Essa produção se encaixa exatamente no perfil daquilo que Stefan Zweig definiu como o “filme histórico perfeito” (se é que existe algum):

… uma combinação de eventos históricos e emoções sugeridas, [que] deveria dar a conhecer ao público não só fatos que ocorreram outrora, mas valores emocionais que prevalecem em qualquer ano e em qualquer clima. […]. Para alcançar esse resultado é necessário, claro, que o filme se mantenha numa atmosfera de verdade (e não de simples exatidão), que não sentimentalize, não caricature nem atenue certos aspectos das figuras históricas (2013, p. 500).

Contudo, “Mary queen of Scots” (2013) não se destaca apenas pela sua aparente fidelidade aos fatos, e sim pela abordagem do caráter de Mary Stuart, representada como uma mulher indomável, que resolveu tomar nas mãos as rédeas do próprio destino, em detrimento dos deveres para com o Estado. Interpretada pela atriz Camille Rutherford, Mary transcende aos olhos do telespectador, neste filme, em toda a sua complexidade e apelo contemporâneo.

Camille Rutherford como Mary Stuart no filme "Mary Queen of Scots" (2013).

Camille Rutherford como Mary Stuart no filme “Mary Queen of Scots” (2013).

Para além dos filmes e séries, a literatura também tem sido alvo de críticas, especialmente as obras da romancista Philippa Gregory. Por meio de uma linguagem fluida e deliciosa, Gregory se tornou muito popular entre o círculo de leitores devido aos seus romances históricos, dos quais o mais conhecido é “The Other Boleyn Girl” (2001), já adaptado tanto para a televisão, quanto para o cinema. Essa obra faz parte de uma série de livros dedicados à dinastia Tudor, cujo sexto volume, intitulado “The Other Queen” (2008), traz Mary Stuart como uma das narradoras. Mantida cativa na Inglaterra, Mary conta ao leitor sua vida, desde a infância na França, fazendo também um relato das causas que a fizeram pedir proteção para Elizabeth I. Philippa, porém, foi muito alvejada pela publicação destes romances, por deturpar alguns fatos e abordar as personagens de uma forma considerada pejorativa. Todavia, o chamado “novo romance histórico” apresenta o passado apenas como pano de fundo para uma narrativa inventada e contemporânea ao escritor. O romancista trabalha justamente em cima das lacunas que o historiador não consegue preencher com a sua pesquisa e, dessa forma, não devemos procurar nas páginas de uma obra como essa a comprovação daquilo que foi dito pelo seu autor. Assim como acontecem com os filmes e séries, romances como “The Other Queen” relevam muito mais do contexto em que foram publicados.

Sendo assim, toda leitura do passado é feita a partir de questões formuladas no tempo presente. O que fez, então, Mary Stuart ressurgir como essa figura de mulher apaixonada e ao mesmo tempo apaixonante? A resposta é muito simples: sua imagem foi revestida no século XXI de elementos que a aproximam do grande público, em vez de a preservar com um ser intocável, disposta em alguma vitrine da história apenas para ser criticada por suas atitudes. A desventurada vida daquela mulher não se distancia muito de um filme da vida real: a trajetória de uma rainha dividida entre o amor de um homem e os deveres da coroa, sofrendo com a inveja de outra soberana. Depois ela faz uma série de escolhas erradas, que lhe custaram tanto o trono quanto o ser amado e, em último lugar, a própria vida. Essa fórmula tem sido reaproveitada ao longo dos anos para criar os mais diversos tipos de enredos, sejam eles cinematográficos, literários ou mesmo biográficos. Santa ou intriguista, mãe desnaturada ou vítima das circunstâncias, o fascínio que Mary Stuart exerce na cultura popular ganhou mais força nos dias de hoje graças às recentes produções midiáticas, que muito contribuiu para um novo olhar acerca desta célebre personagem da história mundial.

Referências Bibliográficas:

FRASER, Antonia. Mary queen of Scots. – New York: Delta, 2001.

GREGORY, Philippa. A outra rainha. Tradução de Ana Luiza Borges. – Rio de Janeiro: Record, 2011.

SCHILLER, Johann Christoph Friedrich von. Maria Stuart: peça em cinco atos. Tradução e prefácio de Manuel Bandeira. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.

WATT, Ian. A ascensão do romance. Tradução de Hildegard Feist.- São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

ZWEIG, Stefan. Maria Antonieta: retrato de uma mulher comum. Tradução de Irene Aron. – Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

_. Maria Stuart. Tradução de Alice Ogando. 12ª edição. Porto: Livraria Civilização Editora, 1969.

10 comentários sobre “A rainha do romance: as representações midiáticas de Mary Stuart no século XXI

  1. Eu apreendi a admirar Mary Stuart depois de ler o livro de zweig,ela enfrentou todas as dificuldades de ser mulher a mais de 400 anos até a pouco tempo 50 anos atrás era bem diferente do que vivemos ,ela viveu vários infortúnios mais lendo sua biografia o pior foi engravidar de um homem que não era seu marido.ai começou o seu fim.e morreu com mais coragem do que muitos homens jamais teriam.Mary Stuart é muito atual apesar do tempo.

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