A fabricação de um ícone: Elizabeth I da Inglaterra e o século XXI

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Elizabeth I da Inglaterra (1533-1603) é uma das monarcas mais enaltecidas de todos os tempos. Sua aparência icônica e ao mesmo tempo imponente ainda provoca impacto aos olhos do público, inebriado pela trajetória de uma mulher que conseguiu se manter no poder por quase 45 anos, apesar de todas as tentativas empreendidas por forças inimigas para derruba-la do trono. Na cultura popular, filmes como “Elizabeth” (1998) e sua sequência “Elizabeth – The Golden Age” (2007), caíram no gosto dos telespectadores, por apresentar a imagem da rainha como mulher e guerreira. Consequentemente, a monarca acabou se tornando um ícone do poder feminino, admirada por diversas pessoas pela sua força perante uma sociedade que relegava as mulheres a um papel subalterno. Entretanto, ao reverenciar Elizabeth I como uma pessoa à frente de seu tempo, talvez estejamos cometendo um equívoco que, por sua vez, beire ao anacronismo histórico.

Ana Bolena, mãe de Elizabeth I (artista desconhecido).

Ana Bolena, mãe de Elizabeth I (artista desconhecido).

A questão do gênero sempre foi muito marcante na vida de Elizabeth I, desde o seu nascimento. O pai rompera com a Igreja Católica para ter um herdeiro do sexo masculino que assegurasse o futuro da dinastia Tudor. Por ser uma garota, Elizabeth foi um duro golpe nas ambições do rei Henrique VIII. Em 19 de maio de 1536, sua mãe, Ana Bolena, foi executada por crimes como traição, adultério e incesto. Como tinha apenas dois anos época, a princesa pouco deve ter compreendido dos motivos que levaram seu pai a se livrar da esposa e contrair um novo matrimônio 11 dias depois. Contudo, foi através de Ana Bolena que Elizabeth teve sua primeira lição do que poderia acontecer com mulheres que transgrediam aos padrões morais do século XVI. O exemplo logo seria reforçado pela execução de sua madrasta, Catarina Howard, também acusada de adultério, em janeiro de 1542. Tais acontecimentos certamente deixaram uma marca profunda na jovem, que se tornou precocemente séria e cada vez mais devotada aos estudos.

Por muitos anos, Elizabeth suportou o fardo de ser chamada de bastarda e filha de uma concubina. Inclusive, haviam aqueles que diziam que ela não era filha do rei, mas de um suposto amante de sua mãe. A sexualidade feminina quase sempre fora alvo de escrutínio público e político. Uma conduta recatada era exigida para as mulheres da aristocracia, que aspiravam ao casamento. Em breve a própria Elizabeth sentiria na pele os transtornos que uma conduta considerada fora da norma poderia lhe causar. Nesse caso, me refiro ao episódio envolvendo Thomas Seymour. Pouco depois da morte de Catarina Parr (1548), seu viúvo passou a cortejar a irmã do rei Edward VI sem o consentimento real. Na época, Elizabeth era uma moça de 14 anos. Infelizmente, o caso se tornou de conhecimento público, alimentado por todo tipo de falatório. A reputação da jovem ficou prejudicada e Thomas Seymour foi decapitado por alta traição, devido às ações que ele tomou contra seu irmão, o Lorde Protetor, Edward Seymour.

Elizabeth I procurava se identificar publicamente com a imagem do seu pai, o

Elizabeth I procurava se identificar publicamente com a imagem do seu pai, o “viril” rei Henrique VIII (quadro de Hans Holbein).

Após a morte do rei, a filha mais velha de Henrique VIII ascendeu ao trono como Maria I, sendo também a primeira rainha coroada da Inglaterra. Elizabeth pôde testemunhar a popularidade da irmã no momento de sua ascensão, assim como o desprestígio da mesma junto aos súditos, graças ao casamento dela com Felipe II da Espanha e à subsequente perseguição aos protestantes. Para além disso, pesava sobre a soberana o fato de ela ser uma mulher exercendo um papel preferencialmente destinado aos homens. Essa pressão foi muito danosa para a rainha, que não queria abrir mão de seus deveres como esposa e gerar um sucessor para o trono, tarefa na qual ela não teve êxito. Maria I acabou falecendo em outubro de 1558, deixando a coroa para a sua meio-irmã de 25 anos. Àquela época, Elizabeth já tinha visto e ouvido várias histórias de mulheres que pagaram com a vida por certas ações consideradas imperdoáveis no sexo feminino.

Uma vez no trono, a nova rainha, com a ajuda de conselheiros, decidiu adotar uma forma de governo mais moderada no que se referia aos assuntos religiosos. Apesar de reverenciar no privado a memória da mãe, ela não queria ser identificada como a filha de Ana Bolena, decapitada por adultério, mas sim como a herdeira do “viril” Henrique VIII, ao contrário de Maria I, que enaltecia publicamente a memória de sua mãe, Catarina de Aragão. Não demorou muito e Elizabeth começou a ser impelida por seus ministros a tomar um consorte. A escolha, porém, foi um dilema que atormentou a rainha por muitas décadas. Casando-se com um pretendente da Espanha ela poderia insultar a França e vice-versa. Dentro do seu próprio reino as opções também não eram mais auspiciosas. Intencionalmente ou não, o fato é que Elizabeth soube muito bem tirar proveito desse jogo matrimonial até quando conseguiu, ora prometendo sua mão a um, ora a outro. Permaneceu solteira até o fim de seus dias.

Maria I, primeira rainha coroada da Inglaterra (quadro de Hans Eworth).

Maria I, primeira rainha coroada da Inglaterra (quadro de Hans Eworth).

Certa vez a rainha Vitória comentou que “não é possível ser esposa e rainha ao mesmo tempo”. Como na Inglaterra do século XIX o monarca tinha se tornado uma figura representativa do Estado, então a soberana pôde se dedicar à sua família com o príncipe Albert. Vivendo 300 anos antes, Elizabeth não tinha a mesma liberdade. Muitos costumam interpretar o fato de que a filha de Henrique VIII não contraiu matrimônio por não querer se submeter à autoridade masculina. Todavia, o mais provável é que ela tenha tomado essa decisão mais por princípios políticos do que por qualquer outro fator. Permanecendo solteira, a rainha não incorria no risco de desagradar a quaisquer aliados, o que certamente não impediu que ela mantivesse uma ligação estreita com alguns cortesãos, como Robert Dudley e o conde de Essex. Rumores de que a chamada “rainha virgem” tenha mantido um caso sexual com esses homens existem até hoje, mas nada foi comprovado. O mais provável é que sejam falácias criadas por facções rivais para atacar a sexualidade da soberana e desmetece-la como governante. Séculos despois, romancistas e diretores se aproveitaram dessa história para desenvolver enredos anacrônicos, criando assim um ícone da cultura pop.

Embora fosse uma mulher em posição de liderança, Elizabeth I estava longe de ser uma defensora dos direitos do sexo feminino, como costumam pinta-la em romances, filmes e séries. A figura de uma rainha inspirando outras a assumir o poder certamente não passava pelas intenções da monarca, sendo essa faceta uma interpretação da Idade Contemporânea. Há relatos de que ela, por exemplo, era muito severa no trato com as prostituas e se enchia de cólera quando alguma prima ou dama de companhia se casava sem o seu consentimento. Mulheres como Elizabeth Throckmorton e Lettice Knollys caíram em desgraça e foram banidas da corte por contraírem matrimônio com reconhecidos favoritos reais (Walter Raleigh e Robert Dudley, respectivamente). Já Catherine e Mary Grey, primas da soberana, cometeram o mesmo “deslize” e tiveram um castigo ainda pior, sendo ambas aprisionadas na Torre de Londres. Entretanto, o maior desafio à vaidade de Elizabeth foi personificado pela figura de Mary Stuart, rainha da Escócia. Esses dois “titãs” do século XVI conviveram por anos no mesmo reino, mas nunca se viram pessoalmente, o que constitui um dos elementos mais intrigantes da relação entre as duas.

Ao contrário de Elizabeth, Mary Stuart não sacrificou sua vida pessoal em prol do Estado (retrato de François Clouet).

Ao contrário de Elizabeth, Mary Stuart não sacrificou sua vida pessoal em prol do Estado (retrato de François Clouet).

Diferentemente de Elizabeth, Mary Stuart não abriu mão de sua vida pessoal em prol do Estado. Assim como Maria I, ela quis ser rainha e esposa ao mesmo tempo. Casou-se pela primeira vez por conveniência política com o Delfim da França e depois mais duas vezes com homens de sua própria escolha. Infelizmente, Mary não contava com o apoio de sábios conselheiros e era quase uma estrangeira dentro de seu próprio reino. Foi julgada severamente pela opinião pública e acabou perdendo a Coroa da Escócia. Sua sexualidade foi alvo de discussão e debate, assim como ocorreu com Ana Bolena. Como não tinha saída, Elizabeth foi forçada a oferecer abrigo à prima e a partir daí o drama entre as duas começou. É possível que a rainha da Inglaterra temesse um encontro com Mary por causa do forte poder de atração que ela exercia sobre aqueles que estavam ao seu redor. Esse aspecto pode ser comprovado pelo fato de que, desde a sua fuga, não faltaram indivíduos que se dispusessem a ajudar Mary a conseguir o que queria. Uma vez em solo inglês, ela passou a ser uma ameaça para a segurança de Elizabeth no trono.

Decapitada em 8 de fevereiro de 1587, sob as ordens de sua própria prima, Mary Stuart foi considerada uma mártir aos olhos da comunidade católica, enquanto Elizabeth foi e continua sendo execrada pela opinião pública por ter ordenado a morte de outra soberana ungida. Foi só após a derrota da Armada Espanhola que Elizabeth ganhou mais confiança em si mesma e no seu governo. Na década de 1590, já era uma monarca consolidada no seu papel e admirada por seus súditos, não por ser uma mulher bem-sucedida, mas por ter conseguido triunfar sobre seus inimigos e resolver as querelas religiosas que provocaram tantos conflitos em reinados passados. Para tanto, a rainha teve que sacrificar aquilo de que sua irmã e sua prima não abriram mão: seu corpo pessoal. Com certeza esse foi um ótimo exemplo de abnegação, para o qual ela foi certamente impelida. Mas a máxima de que uma rainha não poderia reinar e cumprir suas funções conjugais era errônea, como Isabel I de Castela provou muitos anos antes e sua descendente no século XVIII, Maria Teresa da Áustria, iria ratificar. Essas duas soberanas conseguiram conciliar os assuntos de Estado com a administração do lar e foram muito bem-sucedidas nisso.

Retrato de Elizabeth I, pintado por George Gower.

Retrato de Elizabeth I, pintado por George Gower.

Tampouco Elizabeth se reconhecia como igual aos homens, como certa vez foi sugerido em fóruns de debates. Prova disso é o seu discurso às tropas em Tilbury, quando ela disse que “sei que tenho o corpo frágil e fraco de uma mulher, mas eu tenho o coração e estômago de um Rei, e de um Rei da Inglaterra também”. Inclusive, a própria crença na fragilidade feminina foi usada por ela como desculpa quando queria adiar alguma decisão importante ou convencer seus interlocutores. Elizabeth cumpriu apenas o que era esperado dela como monarca. Ela tinha uma grande consciência da sua imagem e a construiu de forma a representar a nação inglesa, silenciando aos poucos seu corpo pessoal para dar lugar ao político. Sem dúvida ela foi uma personalidade impressionante e merece ser vista como tal. Contudo, afirmar que ela foi uma pessoa à frente de seu tempo é bastante perigoso. Sem ser uma defensora dos direitos da mulher, Elizabeth I foi fruto de sua própria época. Não lutou pela emancipação feminina, embora fosse uma mulher empoderada. Talvez, o mais correto seria dizer que, como rainha, ela foi tão ou mais poderosa quanto qualquer rei!

Referências Bibliográficas:

CHASTENET, Jacques. A Vida de Elizabeth I de Inglaterra. Tradução de José Saramago. 2ª edição. São Paulo: Círculo do Livro, 1976.

DUNN, Jane. Elizabeth e Mary: primas, rivais, rainhas. Tradução de Alda Porto. – Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

LOADES, David.  As Rainhas Tudor – o poder no feminino em Inglaterra (séculos XV-XVII). Tradução de Paulo Mendes. – Portugal: Caleidoscópio, 2010.

STARKEY, David. Elizabeth: apprenticeship. – London: Vintage, 2001.

WEIR, Alison. The life of Elizabeth I. – New York: Ballantine Books, 2008.

16 comentários sobre “A fabricação de um ícone: Elizabeth I da Inglaterra e o século XXI

  1. Achei o artigo fantástico. Todavia, eu não diria que ela não é um simbolo do feminismo. Claro, ela não se enquadra no que hoje chamamos de uma mulher moderna, mas eu diria que ela se enquadrava no que Maquiavel chamou de ” o príncipe”. Acho que Elizabeth tinha a virtu, e foi isso que motivou suas ações todas elas. Ela fazia o que sabia que precisava ser feito para manter seu poder. Entendo, que ela soubesse que travar lutas “femininas” – lutar pelos direitos da mulher etc, – a enfraqueceria, pois o contexto histórico em que vivia era machista.
    Ao me ver, ela pode ser considerada um modelo para as feministas modernas, pois mostrou-se inteligente, e sua inteligência foi o que de fato fez dela uma grande rainha. Ainda que não fosse sua intenção, ela provou que mulheres são capazes de governar com a mesma força e inteligência de um homem. Elizabeth mostrou que mulheres podem ter virtu e fortuna, e sem dúvida ela inspirou o surgimento de outras mulheres implacáveis como a Dama de Ferro.

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    • Muito obrigado, Renata. A intenção do artigo foi mostrar que devemos ter um pouco de cuidado quando analisamos a figura de Elizabeth I sob o viés feminista. Ela foi sim um exemplo de mulher forte e empoderada, mas nada fez pela emancipação do seu sexo. Abraços!

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  2. Vc está sendo deprimente ignorante qnto ao que é o feminismo. Elizabeth, obviamente, é um ícone feminista pois acredita e se coloca como igual aos homens. Recomendo que leia sobre o q pretende escrever.

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    • Primeiramente, acredito que antes de se fazer um comentário como esse, você deveria se identificar e não se esconder atrás de uma inicial. Em segundo lugar, não sou e nunca fui ignorante sobre o que é feminismo, uma vez que pesquiso sobre ele desde a graduação e continuo desenvolvendo essa pesquisa no mestrado. Em terceiro lugar, como pesquisador de longa data da vida de Elizabeth I, nunca encontrei uma passagem sequer entre os livros dos seus principais biógrafos (ver referências bibliográficas do texto) que afirmasse que ela se acreditava e se colocava igual aos homens, em plena Inglaterra do século XVI. Pensar nisso, mesmo para uma mulher singular como Elizbeth, é cometer um grande anacronismo histórico. Ela talvez possa ser considerada como um ícone feminista por ter sido uma mulher emancipada, empoderada, forte e inteligente, mas em momento algum lutou pela emancipação do sexo feminino e castigou muitas de suas damas por tomarem atitudes consideradas transgressoras no gênero. Você não está falando com nenhum ignorante sobre o tema, e sim com um profissional formado em universidade pública brasileira e mestrando também por universidade pública brasileira. Quando ao seu outro comentário, que eu excluí devido ao conteúdo agressivo das palavras, fique sabendo que seu eu fosse misógino não teria criado um blog exclusivamente voltado para a história das mulheres, área à qual me dedico a mais de 6 anos. Até mais!

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    • Triste ler este tipo de coisa atualmente. Infelizmente, para algumas pessoas Rê, saber que Elizabeth foi uma monarca que lutou apenas por empoderamento pessoal e não de gênero, pode chocar e destruir a visão ”Elizabeth A Era de Ouro de Cate Blanchett” delas… Segue com teu trabalho ótimo e super bem embasado!

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    • A cultura pop moderna criou uma imagem de Elizabeth I bastante idealizada e por vezes distante do que ela de fato foi. Infelizmente, nem todos aceitam o contrário e partem, além disso, para o ataque pessoal. Realmente deplorável!

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  3. Maravilhoso seu trabalho!!! Me ajudou bastante na produção de um artigo, com a leitura de fácil entendimento e até me influenciou a fazer uma futura monografia sobre esse assunto ou algo relacionado.

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  4. Eu, como simpatizante do feminismo, não considero a Elizabeth como ícone feminiSTA, e sim feminiNO. Como você mesmo demonstrou no texto, em momento algum ela lutou pelas mulheres. Mas ela é um símbolo de como todas nós, mulheres, que fomos criadas em uma sociedade machista, somos reprimidas e, apesar disso, podemos lutar pelo nosso próprio empoderamento.

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  5. Bastarda, Monarca, Maquiavélica, Feminista ou não, quero simplesmente dizer que adoro Elizabeth I (sei lá vai ver tive uma vida passada naquela época… 🙂 ) e este site…as vezes “mato” o serviço e fico por horas a ler os artigos, as postagens…Obrigado !

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  6. Fantástico. a luz de nossos dias podemos fazer leituras equivocadas de personalidades histórias, do tipo fulana era muito feminista, ou fulano era muito liberal. Trata-se apenas de uma vontade de abraçar tal personagem mas não corresponde aos fatos. Temos que procurar entender aquela pessoa dentro daquele contexto e por ultimo “engolir” as limitações que sempre teremos, por limitação leia-se não podemos voltar ao passado e entender o que realmente tal pessoa pensava.
    Muuito bom seu trabalho.

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  7. Mais uma picuinha do que uma correção: Em português, a tradição é traduzir os nomes de papas e membros de casas reais. Daí o artigo deveria ser sobre a Rainha Isabel I, filha de Henrique VIII. A atual rainha do Reino Unido é Isabel II, cujo consorte é o Príncipe Filipe, mãe do Príncipe Carlos, avó do Príncipe Guilherme. Consulte os verbetes relevantes da Wikipédia em português como exemplo desta nomenclatura sendo seguida rigorosamente.

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    • Quem acompanha o blog sabe que eu prefiro manter alguns nomes originais, para não criar confusão com personalidades homônimas, como, por exemplo, Isabel I de Castela ou Isabel II da Espanha, entre outras. Não obstante, Wikipédia não é uma fonte confiável para trabalhos. Já encontrei erros sérios nas matérias publicadas lá.

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