As rainhas na obra de George R. R. Martin: Daenerys Targaryen, a rainha reinante.

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Em 129 d.C. (depois da Conquista) o continente de Westeros era palco de uma das guerras mais sangrentas que sua história já registrou: a disputa entre os irmãos Rhaenyra e Aegon Targaryen pelo Trono de Ferro. Os cantores batizaram esse conflito de “A Dança dos Dragões”, embora “Morte dos Dragões” fosse um título muito mais adequado. Todos os sete reinos permaneceram divididos, com cada lado apoiando um dos pretendentes. As consequências foram catastróficas para as duas facções, especialmente para a casa Targaryen: seus dragões, o orgulho da dinastia, pereceram no conflito. A própria Rhaenyra foi devorada diante dos olhos de seu filho por Sunfyre, a criatura que pertencia ao seu irmão. Consequentemente, criou-se entre os conselheiros do rei o receio de que outra mulher viesse a ocupar o trono. Por quase 150 anos, as tentativas empreendidas para tentar fazer chocar os ovos de dragão restantes se mostraram inúteis, até que uma garota de 16 anos, a última da sua linhagem, descobriu como. Ele entrou numa grande pira funerária com três ovos petrificados. Para espanto de todos, quando o fogo cessou, observou-se que a jovem não só tinha permanecido intocada pelas chamas como também carregava no seu colo três bebês dragões. Seu nome era Daenerys Targaryen!

O nascimento dos dragões, por Michael Komarck.

O nascimento dos dragões, por Michael Komarck.

De todas as personagens femininas criadas por George R. R. Martin para “As Crônicas de Gelo e Fogo”, nenhuma evoluiu mais que Daenerys, que de garotinha assustada transformou-se numa mulher forte e determinada a lutar pela sua herança. Sua reivindicação a um trono até então só ocupado por homens encontra eco em outros casos de rainhas reinantes do nosso contexto, cujo maior desafio foi provar ao mundo que o sexo não era parâmetro para se definir competência. Única família de Senhores de Dragões que sobreviveu à perdição de Valíria, os Targaryen permaneceram por aproximadamente 100 anos refugiados na sua fortaleza localizada na foz da Baía da Água Negra, Pedra do Dragão. Durante esse período, eles demonstraram pouco interesse pelos assuntos de Westeros, até que Aegon Targaryen, juntamente com suas irmãs/esposas Visenya e Rhaenys, planejaram a conquista de todo o continente. Montados em três dragões, eles subjugaram seis dos sete reinos e foram coroados soberanos de todos aqueles domínios. Por quase 300 anos, a casa Targaryen governou incontestável em Westeros, contribuindo de forma significativa para a modernização do reino. Essa situação sofreu um revés quando Robert da casa Baratheon organizou uma rebelião para destronar Aerys II, conhecido como “o rei louco”.

Quase toda a família real foi assassinada, exceto duas crianças que conseguiram fugir para continente vizinho, Essos: Viserys e sua irmã recém-nascida, Daenerys. Ela veio ao mundo durante uma grande tempestade, semelhante àquela que grassava no céu de Estocolmo no dia 18 de dezembro de 1626, quando nasceu a filha do rei Gustavo II da Suécia, que por sua vez se tornaria uma das maiores rainhas reinantes que o mundo já viu: Cristina. Mas diferentemente desta, poucos imaginavam que Daenerys um dia governaria. Seu destino, a priori, estava fadado ao mesmo do das outras princesas de sua família: casar e gerar filhos. De acordo com a tradição valiriana mantida pelos Targaryen em Westeros, por gerações eles casaram irmão com irmã para manter o sangue do dragão “puro”. O próprio Aegon I, o Conquistador, desposou suas duas irmãs e assim fizeram seus sucessores. Quando pequena, Daenerys esperava se casar com Viserys, a quem ela aprendeu a temer desde cedo. Durante sua infância, viviam constantemente em fuga, com medo de que fossem apanhados pelos agentes de Robert Baratheon. Para sobreviverem, venderam a coroa da mãe, a rainha Rhaella (morta em decorrência do parto de Daenerys), contando também com a ajuda de amigos leais. Viserys jamais havia esquecido o que fizeram com sua família e acreditava fervorosamente que um dia iria reconquistar o Trono de Ferro.

Busto de Cleópatra.

Busto de Cleópatra.

Sendo assim, em vez de se casar com a irmã, arrumou um casamento entre ela e um senhor de cavalos Dothraki, Khal Drogo. Em troca, Viserys receberia o apoio do Khal à sua causa. Infelizmente, o chamado “rei pedinte” se precipitou nas suas ações e acabou morrendo nas mãos do cunhado, após ter ameaçado a vida da irmã e do bebê que ela carregava no ventre. Para a maioria, agora Daenerys Targaryen tinha se tornado definitivamente a última de sua linhagem e toda a esperança de uma restauração da monarquia Targaryen recaiu nos seus ombros. Não havia mais como ela fugir do seu destino. Mais do que nunca, ela deveria matar a garota que havia dentro de si e abrir espaço para que a soberana surgisse. E assim o fez! O dilema vivido por Daenerys no universo de “As Crônicas de Gelo e Fogo” também foi compartilhado com outras soberanas da História, entre elas Cleópatra VI (ou VII) do Egito. Semelhante a Daenerys, Cleópatra se tornou a última governante de sua linhagem após a morte do irmão, Ptolomeu XIII. Por séculos, os faraós do Egito com frequência desposavam as suas irmãs para que o poder ficasse concentrado nas mãos de uma mesma família. O próprio pai de Cleópatra, Ptolomeu XII, casou seus dois filhos para que eles pudessem governar de forma conjunta após sua morte. Há nesse aspecto uma evidência bastante forte de onde George R. R. Martin teria se baseado para justificar as relações consanguíneas entre os valirianos.

Da mesma forma como os Targaryen não eram originários de Westeros, os Ptolomeu também não pertenciam ao Egito, mas à Macedônia. Ambas as dinastias governaram seus respectivos reinos por aproximadamente 300 anos antes de cair nas mãos de um conquistador. Uma vez no poder, Ptolomeu XIII foi influenciado por seus preceptores a gradativamente afastar Cleópatra do governo. Muito mais sensata do que o irmão, a soberana teve que fazer seu próprio caminho para recuperar o que lhe tinha sido tomado, aliando-se ao maior comandante militar daquele tempo, Júlio César, seu futuro amante. Após uma série de equívocos políticos, Ptolomeu morreu afogado no Nilo enquanto tentava escapar do exército de César, deixando Cleópatra como a rainha incontestável do Egito. Daenerys Targaryen também era companheira de um dos maiores comandantes de tropas do seu tempo e, com ajuda dele, pretendia reconquistar o trono do seu pai. Infelizmente, Khal Drogo foi vítima da magia da feiticeira Mirri Maz Duur e então Daenerys se viu privada do seu exército. Foi nesse contexto, quando tudo parecia perdido, que a jovem tomou uma grande decisão: entrar na pira funerária de seu marido com os três ovos de dragão petrificados que ganhou de presente de casamento do Magíster Illyrio Mopatis.

Elizabeth I da Inglaterra, por Nicholas Hilliard.

Elizabeth I da Inglaterra, por Nicholas Hilliard.

Surpreendentemente os ovos eclodiram e, a partir desse dia, Daenerys seria conhecida como “a não queimada” e “mãe dos dragões”, tonando-se a primeira mulher a liderar um clã Dothraki. Desde então, a nova Khaleesi se viu forçada a vagar pelo deserto com seu diminuto grupo de seguidores, procurando apoio à sua causa junto a outras cidades e a tropas mercenárias, exatamente como Cleópatra havia feito. Em um curto espaço de tempo, ela conquistou mais do que muitos poderiam imaginar. Nas palavras da personagem Tyrion Lannister, no quinto volume da saga, “A Dança dos Dragões”, Daenerys Targaryen “cruzou as pradarias e o deserto vermelho, sobreviveu a assassinos e conspiradores, derrotou feiticeiros, chorou por um irmão, um marido e um filho, reduziu as cidades dos escravos a pó sob seus delicados pés calçados em sandálias” (MARTIN, 2012, p. 405). Para uma mulher de 16 anos, ela mostrou a todos que era alguém a ser temida, conquistando um exército de soltados imaculados e tomando o bastião do poder império escravagista. Daenerys fez da grandiosa Meereen a sua residência, punindo os antigos senhores de escravos e governando a cidade como sua rainha. Ali, ela deveria se preparar para o papel que o destino lhe reservou do outro lado do mar estreito. Mas a jornada até Westeros é mais perigosa do que a “quebradora de correntes” chegou a supor. Como era esperado de um rainha e mulher, ela deveria se casar. Mas com quem?

Esse drama do casamento também foi vivenciado por outra grande soberana da história, Elizabeth I da Inglaterra. Assim como Daenerys, Elizabeth perdeu a mãe muito cedo e cresceu cercada por medo e insegurança. As adversidades pelas quais passou na infância a tornaram mais forte frente aos desafios do futuro. Uma vez no trono, a filha de Henrique VIII e Ana Bolena usou essa política matrimonial ao seu favor, não se comprometendo formalmente com qualquer pretendente e governando sozinha o país. Com efeito, Daenerys Targaryen não podia se dar ao mesmo luxo, pois era uma estrangeira dentro de seus próprios domínios e para apaziguar a nobreza meerense, teve que tomar como esposo Hizdahr zo Loraq. Apesar de viúva do grande Kahl, Dany ainda era uma mulher muito jovem e com as mesmas características físicas que tornavam os valirianos as pessoas mais bonitas do mundo: seus cabelos são louro-plainados e seus olhos, violeta. Vários pretendentes já tinham se oferecido a ela, como Xaro Xhoan Doxos de Qarth e o príncipe Quentyn Martell, de Dorne. Embora Daenerys Targaryen amasse seu general mercenário, Daario Naharis, ela logo cedo descobriu que uma rainha reinante não se pertencia, mas ao Estado e, portanto, não estava livre para se casar com quem quisesse.

Emilia Clarke como Daenerys Targaryen na primeira temporada de

Emilia Clarke como Daenerys Targaryen na primeira temporada de “Game of Thrones” (2011).

Possivelmente, essa mesma consciência de seu dever para com a nação foi um dos motivos que afastou qualquer ideia de casamento por parte de Elizabeth I com seu amigo de infância, Robert Dudley. Tal como a rainha da Inglaterra, que consultava constantemente seus astrólogos, Daenerys era uma mulher bastante supersticiosa. Levava em consideração cada uma das profecias que lhe foram feitas ao longo de sua jornada, como a das três traições (sangue, amor e dinheiro) descritas por Mirri Maz Duur, as visões que teve na casa dos Imortais, em Qarth, e também os sonhos que tem com a sacerdotisa Quaithe. Tais profecias possuem um significado muito importante no núcleo da personagem, pois é por medo delas que Daenerys conduz as suas ações. No final do quinto volume da saga, após abandonar a Arena de Daznak nas costas de seu dragão, Drogon, ela se viu mais uma vez sozinha e sem aliados, a léguas de distância do seu reino e encurralada pelo khalasar de Khal Jhaqo, antigo companheiro de sangue de Kahl Drogo. O futuro da jovem permanece bastante incerto. Caso tivesse seguido os conselhos de Sor Barristan Selmy, provavelmente ela teria retornado para o Oeste, onde reorganizaria suas forças e partiria para a reconquista de Westeros. Mas há em Daenerys um caráter humanitário que a torna admirável aos olhos do leitor. Ela não queria abandonar Meereen e todos os escravos que havia liberto à própria sorte. Uma rainha reinante deve ser mais do que uma simples governante. Deve ser também a mãe de seu povo!

Todavia, muitos entusiastas da série de livros têm encarado o destino da personagem com bastante receio. Daenerys conseguiu o poder com rapidez e aprendeu do modo mais difícil que conquistar e governar não são a mesma coisa. Se tem uma lição que aprendemos na obra de George R. R. Martin é que: quanto mais alto se está, maior é a queda (Cersei Lannister que o diga!). Por outro lado, a soberana tem ao seu lado todas as qualidades necessárias para reclamar o trono de seus ancestrais: o nome de família certo, um poderoso exército atrás de si e o amor do povo comum; as mesmas armas que a filha de Pedro I (o Grande) da Rússia, possuía quando tomou o poder. Cansada de ver seu direito ao trono usurpado, na noite de 24 de novembro de 1741, a futura Elizabeth I da Rússia partiu para o quartel da Guarda Preobrazhensky e abordou os soldados com apenas uma frase: “Vocês sabem de quem eu sou filha. Sigam-me! ”. Numa só tacada, ela derrubou a rainha regente Ana Leopoldovna e manteve o rei-bebê, Ivan IV, como seu prisioneiro. Contudo, mesmo que Daenerys recupere o trono, ela ainda precisa se livrar do fantasma de sua antepassada, Rhaenyra, e mostrar ao mundo que é tão ou até mais capacitada para governar do que muitos soberanos de sua dinastia.

Referências Bibliográficas:

CHASTENET, Jacques. A Vida de Elizabeth I de Inglaterra. Tradução de José Saramago. 2ª edição. São Paulo: Círculo do Livro, 1976.

MARTIN, George R. R.; DOZOIS, Gardner (orgs.). O príncipe de Westeros e outras histórias. – Rio de Janeiro: Saída de Emergência, 2015.

MARTIN, George R. R.; GARCÍA JR., Elio M.; ANTONSSON, Linda. O mundo de gelo de fogo: história não contada de Westeros e de as crônicas de gelo e fogo. – São Paulo: Leya, 2014.

MARTIN, George. R. R. As crônicas de Gelo e fogo. – São Paulo: Leya, 2012. 5 vols.

MASSIE, Robert K. Catarina, A Grande: retrato de uma mulher. – Rio de Janeiro: Rocco, 2012.

7 comentários sobre “As rainhas na obra de George R. R. Martin: Daenerys Targaryen, a rainha reinante.

  1. Muito bom, os paralelos entre a Daenerys e as Grandes rainhas Elizabeth I, e a Cleópatra, ambas foram realmente grandes mulheres!!
    Uma coisa, você já leu os livros escritos pela Margaret George sobre essas duas rainhas? se sim, o que achou? você recomenda?
    Ótimo texto!!

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    • São romances. Não li os três volumes de “As memórias de Cleópatra”, mas já li “Elizabeth I: o anoitecer de um reinado”. Gostei 😉

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  2. Cleópatra tentou mas não conseguiu. O Egito já não era mais aquela potência dos faraós. Vivia de recordações. Até os sacerdotes cientistas tinham migrado para a França atual, deixando apenas escombros e memórias para aqueles egípcios que ficaram. Os cientistas sacerdotes carregaram consigo todo seu conhecimento e sua sociedade secreta. O legado foi grande: as catedrais de arquitetura gótica, as universidades, o astrolábio e outros aparelhos de navegação e assim por diante. A migração daqueles sacerdotes foi lenta e contínua, a partir da libertação dos hebreus e sua travessia pelo Mar Vermelho. A missão deles tinha terminado ali e deviam expandir seus conhecimentos através do mundo.

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  3. Parabéns Renato, pelo belo texto escrito. Podemos aprender a história do mundo com a ficção também. À propósito, quem é o principal responsável por tão bela página “rainhas trágicas”?

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