As rainhas na obra de George R. R. Martin: Margaery Tyrell, a rainha consorte.

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Linda, gentil, inteligente e bem-nascida. A natureza não podia ter sido mais generosa com Margaery Tyrell, filha de um dos grandes lordes de Westeros. Seu destino, contudo, já havia sido traçado ainda quando ela era uma bebê: casar-se com outro grande lorde e com isso firmar uma aliança política entre a sua família e a do seu marido. O que nenhum dos membros do clã de Jardim de Cima esperava é que aquela menina de cabelos castanhos e olhos de corça se tornaria esposa não de um, mas de três reis. Aos 16 anos, não havia mulher mais bonita em todos os sete reinos. Sua beleza, inclusive, despertou a inveja da rainha regente, Cersei Lannister, que desde então não parou de trabalhar em prol da queda de sua nora. Porém, o que a mãe dos reis Joffrey e Tommen Baratheon não sabia é que, por trás do rostinho meigo da filha de Lorde Mace Tyrell, se escondia uma mulher tão determinada e astuta quanto a própria regente. A personagem criada por George R. R. Martin exemplifica de forma bastante peculiar os meios pelos quais uma mulher nobre deveria agir para alcançar determinado fim, dentro das monarquias europeias de séculos atrás. Os desafios vividos por Margaery Tyrell no universo de “As Crônicas de Gelo e Fogo” também foram compartilhados por outras soberanas do mundo real. Voltemos então a nossa atenção para essa questão.

Ilustração de Margaery Tyrell, feita por Lucas Gama.

Ilustração de Margaery Tyrell, feita por Lucas Gama.

A primeira vez em que Margaey apareceu na série de livros de Martin foi no segundo volume, intitulado “A Fúria dos Reis”, quando Catelyn Stark, viúva de Ned Stark, apareceu em Ponteamarga com uma proposta de aliança militar entre seu filho, Robb Stark (reconhecido como rei do Norte por seus conterrâneos), e Renly Baratheon, autoproclamado rei dos Primeiros Homens, dos Ândalos, dos Roinares e Protetor do Reino. Naquela ocasião, a jovem estava casada com o irmão mais novo do falecido rei Robert. O matrimônio foi arranjado como uma forma de garantir o poderio de Jardim de Cima à reivindicação de Renly à coroa de Westeros. Todavia, pouco tempo depois, o rei foi assassinado graças à mágica de uma sacerdotisa do Deus do Luz, R’hllor, que trabalhava para Stannis Baratheon: Melisandre. No final deste mesmo volume, uma nova aliança militar foi selada com base no casamento. Para que os Tyrell apoiassem a coroa contra Stannis, Margaery deveria se casar com o rei no Trono de Ferro, Joffrey Lannister/Baratheon. Uma vez que o inimigo foi derrotado, a jovem se viu novamente sem marido, pois justamente no dia do seu casamento, Joffrey foi envenenado. Restava agora o pequeno irmão e sucessor do rei, Tommen, ainda uma criança. Assim, num curto espaço de tempo, a filha de Lorde Mace Tyrell se tornou viúva duas vezes e esposa de três reis.

As semelhanças existentes entre Margaery Tyrell e duas outras rainhas inglesas do século XVI é bastante notável. Nesse caso, me refiro a ninguém menos que Catarina de Aragão e Ana Bolena, respectivamente primeira e segunda esposas de Henrique VIII. A filha mais jovem de Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela viajou em 1501 para a Inglaterra a fim de se casar com o herdeiro do rei Henrique VII, Arthur. Seis meses após o enlace, o príncipe faleceu, deixando sua jovem esposa de 16 anos sozinha dentro de uma corte que lhe era estrangeira. Pouco tempo depois, começou a ser discutido um novo casamento entre Catarina e o irmão mais novo de seu finando marido, Henrique. Contudo, uma pergunta permaneceu no ar: teria a infanta consumado o seu primeiro matrimônio? Esse mesmo tipo de questionamento foi levantado por Cersei Lannister por ocasião do casamento de Margaery com seu filho, Joffrey. Uma septã então jurou que a moça era virgem, assim como o irmão da mesma, Sor Loras. No caso de Catarina de Aragão, sua dama de companhia, Doña Elvira, e seu confessor, juraram que a princesa saíra do leito de Arthur da mesma forma como viera ao mundo: intacta. Por conveniência política, nos dois casos citados acima os testemunhos dos amigos e parentes foram aceitos como verídicos. Futuramente, essa questão voltaria para assombrar a personagem histórica e a personagem de ficção.

Catarina de Aragão, por Michael Sittow (c. 1503).

Catarina de Aragão, por Michael Sittow (c. 1503).

Assim como Catarina, Margaery desempenhou suas funções de rainha consorte como poucas haviam feito antes. Costumava visitar a cidade e seus estabelecimentos, oferecendo aos súditos uma visão de sua bondade e beleza. A conduta de uma consorte real deveria estar acima de qualquer repreensão, pois todas as suas atitudes refletiam diretamente na imagem do seu marido, o rei. A rainha, portanto, deveria ser um modelo de retidão e feminilidade, servindo de inspiração para as outras mulheres do reino. Já tendo se tornado uma soberana bastante popular, Margaery começou a demonstrar interesse em participar da política real, da mesma forma como Catarina havia feito com seu segundo marido, Henrique VIII. Essa tática, contudo, já havia sido utilizada por muitas arquiduquesas austríacas da casa de Habsburgo: a de se tornar indispensável nas pequenas coisas para depois exercer influência nas grandes. É possível supor que a personagem Margaery Tyrell tivesse uma profunda consciência de que suas ações poderiam causar boa impressão aos olhos de seu terceiro marido, Tommen, que logo demonstrou uma profunda devoção pela esposa, oito anos mais velha. Não fosse pela rainha regente, Cersei Lannister, o propósito de Margaery teria sido bem-sucedido. Temerosa de que os Tyrell planejassem usurpar seu poder através do rei, Cersei começou então a trabalhar para a ruína da esposa de seu filho, usando como argumento crucial a suposta virgindade da nora.

No quarto volume da saga, intitulado “O Festim dos Corvos”, Cersei Lannister descobre que o Grande Meistre Pycelle oferecia à rainha consorte certas doses de chá de Lua, cujas propriedades, acreditava-se, poderiam evitar ou interromper uma gravidez. Quando essa questão veio à tona, foi dito que de fato o hímen da jovem não estava intacto. Sendo assim, Margaery teria cometido uma traição perante aos olhos dos homens e dos deuses, visto que ela frequentemente participava das celebrações oferecidas à Donzela (uma das sete divindades de Westeros), sendo que apenas moças virgens poderiam tomar parte nos rituais. A explicação para a condição da consorte real, contudo, é muito simples: Margaery era uma verdadeira amante de cavalos e é possível que em decorrência de suas cavalgadas, seu hímen tenha se rompido. Essa mesma paixão que a personagem de George R. R. Martin nutria pela equitação também era compartilhada por Maria Antonieta, rainha da França, o que muito incomodava a sua mãe. Em muitas de suas cartas, a imperatriz Maria Teresa da Áustria (a Grande) exortava sua filha a abandonar o esporte, pois as corridas com o cavalo poderiam prejudicar a integridade do seu ventre. No caso da obra de Martin, a rainha regente se aproveitou desse fato para incluir no rol de acusações contra a nora calúnias como adultério e incesto, o que se constituía num insulto direto à pessoa do rei. A punição para tal crime era apenas uma: a morte.

Ana Bolena, por artista desconhecido (final do século XVI).

Ana Bolena, por artista desconhecido (final do século XVI).

Em 1529 o rei e a rainha da Inglaterra foram protagonistas de um grande julgamento, cuja finalidade era decidir a validade do casamento real. Henrique VIII, convencido de que seu matrimônio havia sido condenado aos olhos de Deus por se casar com a viúva de seu irmão, desejava contrair segundas núpcias com uma dama da corte. Em 20 anos de casamento, Catarina de Aração havia dado à luz apenas uma filha que sobreviveu à infância, falhando assim no dever primordial de uma rainha consorte: prover a coroa de herdeiros homens. Percebendo que a Igreja Católica relutava em conceder a anulação, em 1533 Henrique rompeu seus laços com o papado e fundou uma nova Igreja, através da qual se separou de sua primeira esposa e tomou uma segunda. 3 anos depois, essa segunda esposa foi decapitada sob acusações de traição, adultério e incesto. Seu nome era Ana Bolena. As circunstâncias que levaram à queda da mãe da futura rainha Elizabeth I são bastante parecidas com as de Margaery Tyrell em “O Festim dos Corvos”. Acreditando que seu segundo casamento também era inválido, Henrique VIII incumbiu seu secretário, Thomas Cromwell, de levantar provas contra a rainha. O agente do rei convidou então o músico dela, Mark Smeaton, para um jantar em sua casa e extraiu (possivelmente através de tortura) a confissão de que Ana Bolena mantinha relações sexuais com ele e mais quatro homens do séquito do rei, entre os quais, o próprio irmão, George.

A exemplo do que aconteceu com Ana, Cersei Lannister convidou o cantor da rainha, conhecido como O Bardo Azul, para uma ceia em seus aposentos privados. Dali, o rapaz foi levado para as masmorras da fortaleza vermelha, onde foi violentamente torturado e confessou que Margaery e suas damas se deitavam com nada menos que 13 homens da corte, inclusive com Sor Loras Tyrell, irmão da rainha. Por escrúpulos políticos, Cersei decidiu não incluir o nome de Sor Loras nessa lista, assim como os dos gêmeos Redwyne. Assim, a consorte real foi levada para o grande septo de Baelor, onde permaneceu mantida prisioneira da Fé Militante. Acusando sua nora como adúltera, Cersei queria provar a todos que ela era uma mulher inadequada para o papel de soberana, uma vez que sua conduta sexual era passível de fortes suspeitas. Em um universo onde os testes de DNA não existiam, então qualquer escândalo conjugal envolvendo a rainha conserte afetaria diretamente a legitimidade dos herdeiros (a exemplo do caso da própria Cersei, como veremos no terceiro texto dessa série). Tanto Ana Bolena quanto Margaery Tyrell se tornaram reféns de sua própria condição biológica.

Natalie Dormer como Margaery Tyrell na terceira temporada de "Game of Thrones" (2013).

Natalie Dormer como Margaery Tyrell na terceira temporada de “Game of Thrones” (2013).

Entretanto, diferentemente de Margaery, que tinha o povo e aliados poderosos ao seu lado, Ana Bolena tinha ninguém em quem se amparar. Henrique VIII precisava se livrar de sua segunda esposa para tomar uma terceira. Assim, Ana (que permanecia prisioneira na Torre de Londres) foi julgada e condenada pelos pares do reino, sendo decapitada em 19 de maio de 1536. Quanto à Catarina de Aragão, por ser filha de reis e tia do homem mais poderoso da Europa, Carlos V, seu ex-marido jamais teria coragem de atentar abertamente contra sua vida e correr o risco de provocar uma guerra. Dessa forma, Catarina permaneceu exilada da corte até o dia da sua morte. Diferentemente delas, Margaery teve um destino muito mais brando. No final do quinto livro da saga, “A Dança dos Dragões”, foi revelado que ela havia sido libertada pela Fé Militante e mantida sob custódia de Lorde Randyll Tarly, vassalo de seu pai. Como as acusações de adultério contra a rainha consorte não encontraram base sólida, então ela pôde retornar para a Fortaleza Vermelha, onde aguardaria pelo julgamento da Fé. Com efeito, mesmo que ela se saia vitoriosa, a personagem tem ainda um grande desafio a enfrentar: gerar um herdeiro varão para a coroa. Caso seja bem-sucedida nessa tarefa, a posição de Margaery com certeza estará segura. Do contrário, ela pode retornar para Jardim de Cima mais cedo do que alguma vez imaginou.

Referências Bibliográficas:

FRASER, Antonia. As Seis Mulheres de Henrique VIII. Tradução de Luiz Carlos Do Nascimento E Silva. – Rio de Janeiro: Record, 1996.

LOADES, David.  As Rainhas Tudor – o poder no feminino em Inglaterra (séculos XV-XVII). Tradução de Paulo Mendes. – Portugal: Caleidoscópio, 2010.

MARTIN, George. R. R. As crônicas de Gelo e fogo. – São Paulo: Leya, 2012. 5 vols.

10 comentários sobre “As rainhas na obra de George R. R. Martin: Margaery Tyrell, a rainha consorte.

  1. Nossa! a semelhança é bem grande mesmo, o máximo que eu tinha escutado foi que ele tinha se baseado na Guerra das Duas Rosas, não sabia sobre as personagens femininas.
    Muito interessante.
    bjs Raquel

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    • As semelhanças são muitas, Raquel. Mas até que o autor se pronuncie a respeito, jamais poderemos afirmar com certeza que Catarina de Aragão e Ana Bolena o influenciaram na construção da personagem Margaery Tyrell.

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  2. Olá Renato! O Chá da Lua dado pelo meistre Pycelle não tem como função reconstituir a virgindade (se tiveres alguma fonte que comprove isso, saiba que ficarei realmente surpresa). O Chá da Lua é um contraceptivo, na verdade, pelo que creio, um abortivo. O nome provavelmente derive da relação entre o ciclo lunar e o menstrual (mas disso tu deve entender melhor do que eu).
    Acho que se verificares isso, teu texto vai dar mostras de ser uma fonte ainda mais confiável 🙂
    Parabéns pela pesquisa!

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    • Olá, Kellen. Obrigado pelo interesse. Acabei de consultar “O Festim dos Corvos” mais uma vez e verifiquei que você está certa. Foi um erro de interpretação. Agradeço pela correção. Abraços!

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  3. Creio que um grande indício do uso da história de Ana Bolena é, além das coincidências dos fatos, a própria contratação de Natalie Dormer para o papel de Margaery… Visto que ela foi uma das melhores intérpretes de Ana Bolena já vista na série “The Tudors”.

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  4. Texto excelente, com informações que eu desconhecia e que me ajudaram muito a entender mais um pouco da obra do Martin. Minha única sugestão é revisar o conteúdo por causa de alguns erros de digitação e concordância. Assim, o que já é ótimo fica ainda melhor.

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  5. Realmente, faz todo sentido unir as duas mulheres para criar uma personagem na ficção. Rainha Catarina e Ana Bolena, para o rei, foram apenas extensões de um mesmo objetivo, eram como instrumentos dispostos na prateleira de Henrique VIII, que ele usou para seus interesses. De fato, ele não personalizou as duas mulheres, elas podiam ter qualquer nome, qualquer rosto e qualquer origem. A prova é que ele descartou as duas de forma cruel quando concluiu que elas não lhe serviam mais.

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