O consórcio de almas: o amor romântico e suas contradições em “Lucíola” de José de Alencar (1862)

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Em 1855, a cidade do Rio de Janeiro parecia o lugar mais promissor para todo recém-formado em direito, que ambicionasse uma carreira de sucesso na capital do império brasileiro. O Rio era a porta de entrada para toda espécie de modismos importados de Paris e de outros centros europeus, desde roupas, acessórios, até mesmo manuais de etiqueta e expressões de linguagem adaptadas à realidade dos trópicos. Naquele universo habitado por grandes damas, políticos, escravos, altos dignitários da Corte, entre outros grupos sociais, um jovem provinciano, ingênuo, poderia facilmente se entregar aos hábitos de vida elegante, aos grandes bailes e dilapidar suas poucas economias nos braços de alguma bela cortesã. Mas seria possível que dentro de uma sociedade bastante conservadora, o relacionamento de um homem com uma prostituta pudesse dar lugar a um consórcio de almas e finalmente ao matrimônio? Tal hipótese, que hoje pode parecer aos nossos olhos como uma coisa aceitável, não o era para nossos antepassados de 150 anos atrás. Quem nos esclarece é José de Alencar, num de seus romances de maior sucesso: Lucíola (1862).

José de AlencarO leitor, se já não devorou as páginas da refira obra, certamente conhece sua narrativa através dos lábios de seu/sua professor/a de português, ou então assistiu alguma adaptação audiovisual da mesma, como a telenovela Essas Mulheres (2005), que misturava no seu enredo três dos mais famosos romances de José de Alencar: Lucíola (1862), Diva (1864) e Senhora (1875), que juntos formam a trilogia dos Perfis de Mulher criados pelo autor. No primeiro deles, Paulo, narrador-personagem, conta a uma senhora de idade, G. M., sua história de amor com uma das mulheres mais lindas da Corte carioca: Lúcia. Tamanha era a simplicidade da heroína quando foi avistada pelo pernambucano de 20 anos, durante uma festa da Glória, que ele sequer se deu conta da função que ela desempenhava. O que denuncia a cortesã perante os olhos do provinciano é o fato de que ela estava desacompanhada e que “a ausência de um pai, de um marido, ou de um irmão” deveria tê-lo feito suspeitar da verdade. Assim, o Paulo-personagem confundiu “a máscara da hipocrisia do vício com o modesto recato da inocência” (1998, p. 15).

No segundo capítulo da obra, José de Alencar usa como pano de fundo para sua narrativa a festa que ocorria anualmente em louvor a Nossa Senhora da Glória, uma santa, para então identificar o “demônio” no meio da procissão concentrada na saída da Igreja. Aos poucos, o autor desfila aos olhos do leitor uma série de padrões morais que ditavam o comportamento dos brasileiros de outrora. Para uma mulher, especialmente uma jovem de classe média/ alta, andar pelas ruas, desacompanhada, poderia levantar suspeitas perante os outros membros da sociedade. Apesar de sua beleza virginal, Lúcia é desqualificada moral e socialmente pelo amigo de Paulo, Sá. Por outro lado, ao defini-la como uma mulher bonita, estava sugerindo “que a beleza e o erotismo e o prazer só se encontram em mulheres perdidas”, uma vez que “prazer e instituição não podem ser encontrados juntos nesse universo de convenções e repressões que se chama a boa sociedade”. Nesse caso, “a beleza vista nas prostitutas era a das mulheres dos salões”. (DEL PRIORE, 2012, p. 194).

Lucíola

Lucíola

Em seu livro História do amor no Brasil (2005), a historiadora Mary Del Priore discorre acerca das práticas amorosas no Brasil oitocentista, um século que ela define como hipócrita, que banalizava o sexo, mas que por ele era fissurado, seja através dos tradados de medicina ou por meio da própria literatura. De acordo com esta autora, os casamentos entre as famílias ricas no século XIX poderiam ser entendidos como uma espécie de contrato social, que visava à estabilidade ou elevação do status econômico de ambas as partes envolvidas. Nesse consórcio, o amor e a felicidade eram fatores secundários. Em alguns casos, os nubentes só se conheciam no próprio dia da cerimônia, uma vez que os arranjos matrimoniais eram quase sempre organizados pelos pais e sem qualquer interferência dos futuros cônjuges. A mulher casada que demonstrasse ciúmes pelo marido acima do aceitável, ou que tivesse desejos sexuais para além da procriação, poderia ser taxada de louca e histérica. O prazer no casamento lhe era uma coisa socialmente vetada.

Caso bem diferente era o das prostitutas, vistas pelos moralistas como um mal necessário para aplacar os desejos carnais dos homens, que não podiam ser saciados em casa. Era essa a função da personagem Lúcia: um objeto de luxo usado por homens ricos dispostos a pagar por momentos de diversão. O amor lhe era, assim, um sentimento proibido. Nas palavras da própria personagem:

– Ah! Esquecia que uma mulher como eu não se pertence; é uma coisa pública, um carro de praça, que não pode recusar quem chega. […] Esqueci que para ter o direito de vender meu corpo, perdi a liberdade de dá-lo a quem me aprouver! O mundo é lógico! Aplaudia-me se eu reduzisse à miséria a família de algum libertino; era justo que pateasse se eu tivesse a loucura de arruinar-me, e por um homem pobre! […]; enquanto ostentar a impudência da cortesã e fizer timbre da minha infâmia, um homem honesto pode rolar-se nos meus braços sem que a mais leve nódoa manche a sua honra; mas se pedir-lhe que me aceite, se lhe suplicar a esmola e um pouco de atenção, oh! então o meu contato será como lepra para a sua dignidade e reputação. Todo homem honesto deve repelir-me (1998, p. 68).

Por vender o seu corpo, Lúcia perdera o direito de se entregar livremente a quem quisesse. Marginalizada pela sociedade da época, seu papel era o de dar prazer aos homens que pudessem pagar por ele.  Contudo, a situação da personagem era um pouco mais confortável se comparada a outras prostitutas da época. Lúcia era uma cortesã de luxo, possuía sua própria casa e frequentava os mais requintados bailes da Corte carioca. Diz Mary Del Priore que “uma cortesã famosa era signo de poder para quem as entretivesse” (2005, p. 196). Através da pena de Alencar desvendamos um pouco mais desse universo, habitado tanto por prostitutas francesas, que gozavam de certa fama de libertinagem entre os aristocratas, quanto por polonesas (as chamadas polacas). Quem não podia pagar por uma noite de prazer com alguma francesa, se contentava com as polacas. Diferentemente das cortesãs de luxo, as outras moravam em bordéis que, dependendo de quem os frequentava, atraiam dois tipos de clientela: os homens ricos e os da classe média. Havia ainda as prostitutas pobres, que não habitavam em bordeis, mas em sobradinhos, e também aquelas que faziam mercado de seu corpo pelas ruas da periferia do Rio de Janeiro.

Salão de cortesãs parisienses na rue des Moulins, por Henri Toulouse-Lautrec (1894).

Salão de cortesãs parisienses na rue des Moulins, por Henri Toulouse-Lautrec (1894).

O interessante na descrição da prostituição em Lucíola são os motivos que levavam as brasileiras a ingressarem por essa vida. No caso de Lúcia, que antes de se tornar cortesã, se chamava Maria da Glória, é dado ao leitor o conhecimento de que ela fora forçada a vender seu corpo em troca de dinheiro para salvar seus pais e irmãos de um surto de febre amarela. Após descobrir o que a filha fizera o pai a expulsa de casa e então Maria não tem alternativa a não ser seguir pelo caminho da prostituição. Seria essa situação apenas uma prerrogativa do século XIX? Pelo contrário. Existem muitas Lúcias na sociedade brasileira atual, forçadas a vender seu corpo por não ter alternativa de sobrevivência. Mas o direito de amar e ser amada, que hoje elas possuem, não era permitido à heroína de Lucíola. Seguindo a linha de pensamento do autor, no Brasil oitocentista, uma vez prostituta sempre prostituta. Não havia regeneração para aquelas mulheres, exceto a espiritual. É o que se passa com Lúcia, que guarda no interior da bacante, a virgem e pura Maria da Glória, esperando apenas o contato da pessoa certa para emergir novamente e afundar de vez a cortesã.

Em Lucíola, era o homem quem possuía a força para resgatar Maria da Glória do interior de Lúcia. Do momento em que percebe isso, a heroína vai aos poucos afastando o amado até que entre eles não exista mais contato físico. O ideal do amor romântico estava então consumado. Conforme nos diz Maria Ângela D’Incao:

O período romântico da literatura brasileira, especialmente a literatura urbana, apresenta o amor como um estado de alma. […] Ama-se, porque todo o período romântico ama. Ama-se o amor e não propriamente a pessoa. […] O amor parece ser uma epidemia. Uma vez contaminadas, as pessoas passam a suspirar e sofrer ao desempenhar o papel de apaixonados. Tudo em silêncio, sem ação, senão as permitidas pela nobreza desse sentimento novo: suspirar, pensar, escrever e sofrer. Ama-se, então, um conjunto de ideias sobre o amor (2012, p. 234).

Se para Paulo e Lúcia não era socialmente permitido o matrimônio, uma vez que a heroína, apesar de espiritualmente regenerada, não poderia apagar o passado de seu corpo, então a solução era o consórcio de almas. Seriam para sempre amigos, irmãos, companheiros, mas não amantes.

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O modelo de mulher ideal naquele período era o da rainha do lar, preocupada com a saúde do marido e a educação dos filhos – Cena da família de Adolfo Augusto Pinho (quadro de José Ferraz de Almeida Júnior, 1891).

A perspectiva de um casamento entre almas, tão comum ao ideal do amor romântico, poderia ser o ápice da felicidade para Lúcia, que depois de uma vida de luxúria, resgatou de dentro de si a Maria da Glória e foi viver numa pequena casa, afastada do cento da cidade, junto com sua irmã mais nova. Aqui temos então uma das maiores contradições na obra de Alencar: apesar de regenerada pelo amor espiritual, Maria só encontrou a liberdade tão sonhada na morte, pois para a sociedade brasileira oitocentista, ela nunca se livraria da sombra da cortesã. Sua simples presença ameaçava as mulheres de “famílias puras”, fossem elas donas de casa ou trabalhadoras. O modelo de mulher ideal naquele período era o da rainha do lar, preocupada com a saúde do marido e a educação dos filhos. “A mulher que se deixasse conduzir por excessos, guiar por suas necessidades, só podia terminar na miséria, espreitada pela doença e a miséria profunda” (DEL PRIORE, 2005, p. 200). Mas as prostitutas também amavam e não faltam histórias do período nas quais elas se sacrificavam no meretrício em nome do amado, tal como Lúcia fizera por Paulo. Um exemplo é o caso do belga de 27 anos Joseph Pellison, sustentado por certa Aline, uma prostituta.

Entretanto, há em José de Alencar um moralista convicto. Para ele era preferível matar o corpo de Lúcia, para que na morte a alma de Maria da Glória encontrasse enfim a sua liberdade. Se o desenlace do romance, como era então padrão no romantismo, é o casamento, em Lucíola este consórcio só poderia acontecer no céu e não na terra. Para que o casal de protagonistas encontrasse a felicidade, “Maria da Glória nunca deveria ter se transformado em Lúcia. Alencar, nesse passo e em muitos outros, mantém o rígido padrão moralista do século” (RIBEIRO, 2008, p. 92). Em nenhum momento passa pela cabeça dos atores desta trama a ideia do casamento, uma vez que a “a mancha no corpo de Lúcia é indelével”. Para a protagonista, ela jamais deveria amar, ou muitos menos gerar o filho de Paulo, embora confesse no final da trama, à beira da morte, que o amou desde o primeiro dia, uma vez que ele conseguiu enxergar nela a Maria da Glória em vez da cortesã (ibid., p. 93). Nesse aspecto, e também por sua trajetória narrativa, Lucíola se difere dos modelos franceses que José de Alencar foi acusado de plagiar, notadamente A dama das Camélias, de Alexandre Dumas (filho).

Carla Regina, no papel da personagem Lúcia/ Maria da Glória, na novela

Carla Regina, no papel da personagem Lúcia/ Maria da Glória, na novela “Essas Mulheres” (2005).

Com efeito, a narrativa do romance “ultrapassa os limites de estorinha de amor que não teve um final feliz”, como no caso de A dama das Camélias (MARCO, 1986, p. 190). Publicado em 1862, Lucíola caiu no gosto dos leitores. José de Alencar, anos mais tarde, em sua autobiografia literária Como e porque sou romancista (1873), se queixou do pouco entusiasmo com que a crítica especializada recebeu a obra. “Uma folha de caricaturas”, disse o romancista, “trouxe algumas linhas pondo ao romance tachas de francesia”. Mas “apesar do desdém da crítica de barrete, Lucíola conquistou seu público, e não somente fez caminho como ganhou popularidade” (2005, p. 66-7). Seu enredo já fora adaptado várias vezes para o teatro e a televisão, e de tanto que correu na boca do povo, acabou se transformando em memória da Nação brasileira. Sua narrativa convida o leitor a descortinar a sociedade do período e suas contradições, à luz do presente e da perspectiva de quem lê o romance. Ao final do mesmo, o que marca é o perfil da mulher lutando para libertar de si seu verdadeiro eu, em detrimento da identidade que fora obrigada a adotar. A força de Lúcia/ Maria da Glória, inspira, provocando no leitor uma autorreflexão, na busca de sua verdadeira identidade.

Referências Bibliográficas:

ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. – 2ª ed. Campinas: Pontes, 2005.

_. Lucíola. – 22ª ed. São Paulo: Ática, 1998.

BORGES, Valdeci Rezende. Cidade e cultura escrita: a corte de José de Alencar (1840 a 1870). – Goiânia: FUNAPE/DEPECAC, 2011.

D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. – 10ª ed. São Paulo: Contexto, 2012, p. 223-240.

DEL PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. – 3ª ed. São Paulo: Contexto, 2012.

MARCO, Valéria de. O império da cortesã – Lucíola: um perfil de José de Alencar. – São Paulo: Martins Fontes, 1986.

RIBEIRO, Luiz Felipe. Mulheres de papel: um estudo do imaginário em José de Alencar e Machado de Assis. – 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

7 comentários sobre “O consórcio de almas: o amor romântico e suas contradições em “Lucíola” de José de Alencar (1862)

  1. Realmente não acho que tenha sido plágio mas sim uma grande inspiração. Algo super normal visto que nossa literatura sempre sofrera grande influência da literatura européia. Parabéns pelo ótimo post.

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  2. Gosto muito do romance Lucíola. Lí em algum lugar que existe uma peça de Alencar chamada Asas de Anjo, que é parecida com a Dama das Camélias.

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