Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Na sexta-feira, dia 19 de maio de 1536, por volta das 8 da manhã, Ana Bolena, Senhora Marquês de Pembroke, recebeu um grupo de guardas liderados pelo guardião da Torre, William Kingston. Vinham para escolta-la até o patíbulo, onde em alguns instantes encenaria o último capítulo da sua turbulenta vida. Apenas 4 dias antes, ela tinha sido julgada por uma corte de nobres, presidida pelo seu próprio tio, o duque de Norfolk, acusada de crimes como traição, adultério e incesto. Declarada culpada, Ana e mais 5 homens, entre eles seu irmão George, foram condenados à morte por decapitação. Após assistir à execução de seus amigos da janela de sua cela na Torre de Londres, no dia 17, agora era a vez da outrora rainha da Inglaterra seguir o mesmo destino e se entregar à justiça do rei. Vestindo um robe de damasco preto, com saia vermelha, manto de arminho e capelo de estilo inglês (trajes dignos de uma soberana), Ana Bolena proferiu diante de poucos espectadores seu derradeiro discurso de despedida, no qual pedia perdão pelos seus pecados e rezava pela alma do rei. Depois disso, com os olhos devidamente vendados, ela se ajoelhou enquanto murmurava prece silenciosa nos lábios, a espera do golpe da espada do carrasco.

Retrato de Ana Bolena de como ela provavelmente se parecia no tempo de sua queda (final do séc. XVI, por artista desconhecido).
“A rainha morreu corajosamente. Deus a tome em sua misericórdia”, escreveu Kingston em uma carta ao secretário Cromwell, relatando os últimos instantes de Ana Bolena em vida. Logo após o golpe certeiro, que seccionou a cabeça daquela mulher quase que num piscar de olhos, suas damas de companhia rapidamente trataram de dar destino aos despojos da vítima. De acordo com uma carta escrita por um expectador português para seu correspondente em Lisboa: “uma de suas damas [de Ana] pegou a cabeça e as outras o corpo, cobrindo-os com um lençol e a colocaram dentro de um baú que estava preparado, levando-a para a igreja dentro da Torre, onde, dizem, ela jaz sepultada com os outros”. A igreja que consta no seguinte trecho é nenhuma outra senão a capela de Saint Peter ad Vincula, onde eram enterrados os nobres executados por traição. Nas palavras de George Wyatt, um dos primeiros biógrafos de Ana e neto do poeta que um dia cortejou a segunda esposa de Henrique VIII: “Deus providenciou enterro secreto para seu cadáver, mesmo em um lugar, por assim dizer, consagrado à inocência”.
Ana Bolena teria sido sepultada, possivelmente, debaixo do altar principal da capela, próximo ao coro (“um lugar consagrado à inocência”). É possível que tenha sido um dos primeiros corpos enterrados naquele espaço. No dia seguinte ao da execução, 20 de maio, Henrique VIII ficou noivo de Jane Seymour. No dia 30, o rei a tomou com terceira consorte, enquanto o corpo de sua segunda esposa apodrecia em um túmulo não identificado. Quase 6 anos depois, a prima de Ana por parte de mãe, Catarina Howard, quinta das seis esposas de Henrique, também foi decapitada por acusações de adultério. Seu corpo foi sepultado no mesmo local que o da mãe da futura rainha Elizabeth I. Ali, as duas mulheres que supostamente trouxeram “vergonha” para a família Howard permaneceriam unidas pela eternidade. Por mais de 20 anos, Ana Bolena se tornou uma espécie de não-ser. As pessoas sequer mencionavam o seu nome; era como se ela nunca tivesse existido, até que, em 1558, Elizabeth assumiu o trono do pai como Elizabeth I.
Embora fosse mãe da monarca reinante, sua filha não providenciou um sepulcro digno para Ana Bolena. A melhor evidência de que dispomos sobre o afeto da rainha pela sua progenitora (que morreu quando a filha tinha 2 anos e meio) é um anel que guarda no fecho uma miniatura de Elizabeth e o de outra mulher com rosto oval e trajes franceses, que muitos consideram como Ana. De acordo com uma lenda popular, o corpo da segunda esposa de Henrique VIII foi removido da Torre algum tempo depois de sua morte por seus familiares. Os despojos teriam sido novamente sepultados ao lado do de seus ancestrais, debaixo de uma simples lápide de mármore negro, na Salle Church, perto de Blickling Hall (Norfolk), onde Ana provavelmente nasceu. Conforme ressalta Norah Lofts (1980, p. 181), não teria sido difícil para os parentes de Ana removerem seu corpo da Torre, uma vez que a vigilância dos guardas da capela de Saint Peter ad Vincula durante aqueles dias de 1536 era muito relaxada. Não obstante, havia o fato de que não era uma coisa comum proteger o corpo de uma pessoa que morreu acusada de traição.

Interior da capela de St. Peter ad Vincula, na Torre de Londres.
Entretanto, tal hipótese foi descartada quando a lápide na Salle Church foi removida há alguns anos e nenhum remanescente humano foi encontrado debaixo dela. Outra lenda que ganhou ampla divulgação no começo do século XIX foi que o coração, ou mesmo a cabeça de Ana, teria sido sepultado debaixo de uma placa preta muito menor no cemitério da igreja da paróquia de Horndon-on-the-Hill. Existem outros possíveis locais de sepultamento do coração da rainha, como na igreja próxima a Thetford (Norfolk), ou na igreja de Erwarton (Suffolk), “onde um pequeno caixão em formato de coração foi descoberto na parede da capela-mor em 1836 ou 1837, e novamente enterrado sob o órgão, debaixo do memorial de Cornwallis” (WEIR, 2009, p. 341). Porém, o enterro do coração separado do corpo havia caído de moda na Inglaterra desde o final do século XIV, o que torna a hipótese aplicada ao caso de Ana Bolena bastante difícil de se comprovar.
Segundo George Abbott, um guarda que escreveu vários livros sobre a Torre de Londres, as tumbas na capela de Saint Peter ad Vincula foram abertas durante o reinado de Elizabeth I, onde os corpos de Ana Bolena, Catarina Howard, Lady Jane Grey, entre outros, foram encontrados não debaixo do altar, mas sim debaixo do pavimento do coro. Porém, o trabalho de Abbott foi considerado por alguns especialistas como suspeito, uma vez que ele não citou a fonte para comprar tal afirmação. Em 1876, foi aprovada pela rainha Vitória a restauração da capela, que naquela altura estava bastante dilapidada. A rainha, porém, impôs como condição para que os trabalhos tivessem prosseguimento de que os remanescentes humanos que ali fossem encontrados, recebessem a maior reverência e cuidados possíveis. O mesmo critério se aplicava ao processo de identificação das ossadas. Mas, antes que os trabalhos na capela começassem, um problema apareceu de imediato: onde estaria enterrado o corpo de Ana Bolena? não havia sequer um memorial marcando o lugar em que a rainha fora sepultada em 1536.
Mais tarde naquele ano, no mês de novembro, as escavações feitas no pavimento do altar comprovaram que a maioria dos remanescentes ainda estavam nas mesmas sepulturas que ocupavam há 3 séculos. Após as tentativas de identificação dos esqueletos começarem, descobriu-se uma pilha de ossos enterrados apenas dois pés embaixo do chão do coro, pertencentes a uma mulher de 25 e 30 anos, com uma compleição delicada, fina e de proporções perfeitas. De acordo com as descrições feitas na época, a cabeça e o maxilar inferior eram muito bem formados e a vértebra era particularmente pequena, tal como o pescoço. O crânio, por sua vez, tinha um formato oval, testa alta, cume orbital reto, olhos grandes e um queixo quadrado. Para o Dr. Frederic Mouat, cirurgião que examinou os remanescentes, a mulher devia medir entre 5 a 5 pés e três polegadas de altura. Convencido de que todos aqueles ossos pertenciam à mesma pessoa, o Dr. Mouat disse que as características do esqueleto “coincidiam com todas as descrições publicadas da rainha Ana Bolena, e que os ossos do crânio poderiam pertencer à pessoa retratada por Holbein no rascunho pertencente à coleção do conde de Warwick” (WEIR, 2010, p. 344).
Com efeito, não foi encontrada qualquer evidência de um sexto dedo, conforme Nicholas Sander e George Wyatt nos fizeram acreditar por mais de três séculos. Os ossos da mulher identificada como Ana Bolena haviam sido perturbados em 1750, quando o caixão de Hannah Beresford foi sepultado dois pés abaixo do caixão da rainha. Para Alison Weir (2010, p. 344), é possível que o Dr. Mouat tenha cometido um engano na análise dos remanescentes humanos, uma vez que as cópias dos retratos de Ana (como os do castelo de Hever e o da NPG) a mostram com um queixo pontudo e não quadrado. Além disso, Weir e Eric Ives acreditam que não sobreviveram quaisquer rascunhos da rainha feitos por Holbein, de modo que o retrato no castelo de Warwick se trata de uma cópia do século XVIII, com base em um rascunho da autoria do referido artista. A mulher no esboço só foi identificada como sendo Ana Bolena em 1649. Não obstante, nós não sabemos o quão alta Ana Bolena era: o embaixador veneziano Francesco Sanuto a descreveu como uma mulher de estatura mediana.
Todavia, em seu relato, Sanuto revelou que Ana Bolena tinha um pescoço longo, muito diferente do esqueleto identificado na capela pelo Dr. Mouat, que foi descrito como tendo um pescoço curto. Além do mais, outras quatro mulheres também foram sepultadas debaixo do chão do coro durante o período Tudor: Catarina Howard, quinta esposa de Henrique VIII, Margaret Pole, condessa de Salisbury, Lady Jane Grey (cujos remanescentes humanos não foram perturbados) e Jane Rochford, cunhada de Ana. Como a ciência forense não era bem desenvolvida no período vitoriano, então é provável que o Dr. Mouat possa ter cometido um engano na estimativa das idades dos corpos. Um dos que ele possivelmente acertou foram os remanescentes de Margaret Pole, cujo esqueleto foi diagnosticado como o de uma mulher de 67 anos, a mesma idade em que a condessa morreu. Curiosamente, perto dos remanescentes humanos do duque de Northumberland, em um lugar onde Catarina Howard poderia ter sido enterrada, partes do esqueleto de duas mulheres foram encontrados. Segundo Weir (2010, p. 345), é possível que aqueles corpos tivessem sido removidos no século XVIII para dar lugar a outros. Os supostos remanescentes humanos da quinta esposa de Henrique VIII não foram encontrados completos, certamente devido à ação da cal viva, que os transformou parcialmente em pó.

Túmulo de Ana Bolena na capela de St. Peter Ad Vincula, na Torre de Londres.
Destarte, outro esqueleto identificado pelo Dr. Mouat foi o de uma mulher de delicadas proporções, com idade estimada entre 30 e 40 anos. Talvez esses ossos pudessem pertencer a Ana, cuja idade no tempo de sua morte pode ser estabelecida em 35 e não em 29, como muitos historiadores do período vitoriado afirmavam. Em abril de 1877, todos os remanescentes humanos foram novamente enterrados em caixões de chumbo individuais, com uma placa indiciando o nome e o escudo de armas das respectivas vítimas. Os supostos ossos de Ana Bolena e de Catarina Howard foram sepultados no mesmo lugar em que foram encontrados, com seus títulos de rainha gravados em lápides. Para Weir (2010, p. 345), é possível que o corpo que jaz embaixo da placa de mármore no altar da capela de Saint Peter ad Vincula não seja o de Ana, e sim os de sua cunhada, Jane Rochford. Todavia, mesmo que esse seja o caso, só podemos louvar a atitude daqueles que se preocuparam em dar um sepulcro digno para os ossos daquela mulher que foi vítima de sua própria sorte, mas que deixou um presente valioso para as gerações futuras na figura de sua filha, Elizabeth I da Inglaterra.
Referências Bibliográficas:
DENNY, Joanna.Anne Boleyn: a new life of England’s tragic Queen. – London: Portrait, 2007.
FRASER, Antonia. As Seis Mulheres de Henrique VIII. Tradução de Luiz Carlos Do Nascimento E Silva. 2ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1996.
IVES, Eric W. The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom: Blackwell Publishing, 2010.
LOFTS, Norah. Anne Boleyn. – New York: Coward, McCann & Geoghegan, 1980.
NORTON, Elizabeth. The Anne Boleyn Papers. – Gloucestershire: Amberley Publishing, 2013.
WEIR, Alison. The lady in the tower: the fall of Anne Boleyn. – New York: Ballantine Books, 2010.
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Bastante elucidativo
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Adorei toda história sobre Ana Bolena e as outras. Me pareceu que a morte dela,foi totalmente injusta.
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Que triste fim de uma mulher tão incrível, sem duvida muito injustiçada!
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É um texto longo, sobre vidas trágicas, nomeadamente sobre a rainha Ana Bolena. Mas muito interessante
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