Julgamento e morte de Maria Antonieta, a última rainha da França – Parte I

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Parte I – Dia 14 de Outubro de 1793.

Encarcerada na prisão da Conciergerie desde o dia 01 de agosto de 1793, Maria Antonieta da Áustria, conhecida em toda a França como viúva Capeto, dirige-se às 08h00min da manhã de segunda-feira para o Tribunal Revolucionário, onde será julgada por crimes contra a nação. Vestida totalmente de preto, ela avançava por meio da multidão apinhada nas tribunas, que vieram assistir à ruina de uma rainha, e, no entanto, encontraram uma mulher profundamente abatida e que aparentava muito mais do que seus 37 anos. Os guardas que a acompanhavam, conduziram-na até uma poltrona, localizada sobre um estrado. Ao sentar-se, ela se dera conta dos rumores que a cercavam, vindo de pessoas tanto com gestos injuriosos, quanto compassivos por parte de outras. Que teriam pensado ao ver aquela mulher que sempre souberam fútil e egoísta, agora extremamente pálida, com cabelos brancos e olheiras profundas? Sem dúvida, em quase nada lembrava a Deusa da graça que outrora desfilara pelos salões de Versalhes, exceto pela sua dignidade dos Habsburgo, que, por sua vez, jamais perderia, nem mesmo diante das piores eventualidades. A Revolução a tornara emaciada.

Maria Antonieta se dirige ao Tribunal Revolucionário, por Paul Delaroche.

Maria Antonieta se dirige ao Tribunal Revolucionário, por Paul Delaroche.

Com efeito, ela já conhecia seus juízes, desde dois dias antes, quando fora despertada na calada da noite para uma espécie de interrogatório “secreto”. Trata-se de Herman, que preside outros três assessores: Foucauld, Douzé-Verteuil e Lane. Entre os membros do júri, encontravam-se “um médico cirurgião, um livreiro, um fabricante de perucas, um sapateiro, um proprietário de café, um chapeleiro, um músico, dois carpinteiros, um leiloeiro, um jornalista e um antigo promotor, além do marquês de Antoinelle, ex-presidente da Assembleia Legislativa e adepto da revolução desde o início…” (LEVER, 2004, p. 334). Todos eles eram seguidores de Robespierre e do acusador público Fouquier-Tinville, que estava pessoalmente presente no julgamento. Após a ré sentar-se, o presidente da sessão pediu que ela pronunciasse seu nome, sobrenome, idade e profissão, e então ela respondeu: Chamo-me “Maria Antonieta Lorena da Áustria, nascida em Viena; idade, cerca de trinta e oito anos, viúva de Luís Capeto, rei da França”, e em seguida acrescenta, “no momento da minha prisão, encontrava-me na sala das sessões da Assembleia Nacional” (BERTIN, p. 17).

Ao lado da ex-rainha, estavam seus advogados, Chauveau-Lagarde e Tronson Doucoudray, designados para defendê-la no dia anterior[i]. Após responder à primeira pergunta de Herman, Antonieta ouviu com atenção a leitura do auto de acusação, o que Evelyne Lever (2004, p. 334) chama de “obra-prima de retórica revolucionária”. Elaborado por Fouquier-Tinville, o documento, entre outras coisas, dizia o seguinte:

“Que desde a revolução, não cessou um só instante a viúva Capeto de entreter relações secretas e correspondência criminosa e nociva à França com as potências estrangeiras e no interior da República, por meio de agentes fieis, aos quais pagava e fazia pagar pelo ex-tesoureiro da chamada lista civil; que em épocas diferentes empregou todas as manobras que julgava próprias a seus pérfidos interesses, a fim de provocar uma contra revolução. […] Que, assim que chegou em Paris, a viúva Capeto, fecunda em intrigas de toda espécie, organizou conciliábulos em sua casa; que esses conciliábulos, compostos de todos os contra revolucionários e intrigantes das Assembleias constituinte e legislativa, se reuniam nas trevas da noite; que aí se cuidava dos meios de anular os direitos do homem e os decretos já estabelecidos, que deviam servir de base à constituição…” (apud LIMA, 1952, p. 5-6).[ii]

Não obstante, o auto de acusação comparava Maria Antonieta com algumas odiadas rainhas da Antiguidade e da Idade Média, tais como Messalina, Brunilde, Fredegonda e Catarina de Médici; de ter espoliado o tesouro nacional para financiar a guerra da Áustria contra a Turquia e, além disso, de influenciar Luís XVI a tomar atitudes contra revolucionárias.

Chauveau-Lagarde, advogado que, ao lado de Tronson du Coudray, foi designado para defender Maria Antonieta em seu processo (por: Jean Sébastien Rouillard).

Chauveau-Lagarde, advogado que, ao lado de Tronson du Coudray, foi designado para defender Maria Antonieta em seu processo (por: Jean Sébastien Rouillard).

Todavia, a ré já sabia de quase todas essas acusações, desde o sábado de 12 de outubro. O problema, entretanto, foi que não lhe deram tempo e aos seus advogados de arrumarem uma melhor defesa, ao contrário do rei, que teve quase um mês de preparação para seu próprio julgamento, no início de 1793. Feita a leitura do auto, começa então a procissão das 41 testemunhas, cuja primeira delas fora Laurent Lecointre, um ex-vendedor de tecidos que “descreveu festins e orgias que teriam acontecido em Versalhes num período de dez anos, culminando no famoso banquete de 1° de outubro de 1789 – a nenhum dos quais, é claro, esteve presente” (FRASER, 2009, p. 474). Maria Antonieta, por sua vez, limitava-se a dar respostas curtas, como “Não lembro” ou “Nada tenho a declarar”. Apesar de não comprometedoras, tais réplicas ditaram o tom das reações da ex-rainha, indiferente a toda aquela encenação. Outra testemunha, como o médico Rossilon, afirmara que ela embriagara os soldados com bebida alcoólica, a fim de estimulá-los contra a população no dia 10 de agosto de 1792 (quando uma multidão invadiu as Tulheiras, forçando a família real a se refugiar na Assembleia Nacional).

Segundo Evelyne Lever (2004, p. 335), todas essas testemunhas nada mais eram do que “fantoches abjetos cujos depoimentos nunca seriam levados a sério num tribunal digno desse nome”. Além disso, a maioria dos depoimentos carecia de provas concretas, o que colocava em dúvida a veracidade das acusações. Apesar de Maria Antonieta defender-se vigorosamente, para frustação do tribunal que não conseguiu apanhá-la em qualquer contradição, o tédio do julgamento foi quebrado pelo testemunho de Hébert, redator-chefe do jornal Le Père Duchesne. Após interrogar através de métodos duvidosos[iii] o filho de oito anos da ex-rainha, Luís Carlos, ele extraíra uma confissão de que tanto Antonieta quanto sua cunhada, madame Elizabeth, submetiam o garoto a relações incestuosas com elas mesmas. De acordo com a testemunha, havia motivos para acreditar “que o objetivo dessas relações sexuais criminosas não tenha sido o prazer, e sim a esperança política de debilitar as condições físicas da criança, que eles [os monarquistas] ainda consideravam destinada a ocupar o trono e sobre cuja mente, portanto, queriam estar seguros de exercer influência” (apud LEVER, 2004, p. 335).

O acusador público Fouquier-Tinville, por artista desconhecido.

O acusador público Fouquier-Tinville, por artista desconhecido.

Entretanto, Maria Antonieta ignorara aquela acusação, limitando-se a responder outras perguntas da testemunha, como a de que ela, depois da execução de Luís XVI, tratava o filho como se fosse um rei, fazendo-lhe, inclusive, sentar na cabeceira da mesa de jantar na Torre do Templo e ser servido primeiro que todos os outros. Nesse sentido, sua resposta fora categórica: “Testemunhaste isso?” (FRASER, 2009, p. 475). Então o julgamento prosseguira, inquirindo à ré sobre sua suposta participação em planos de fuga, etc., até que um dos jurados interrompeu: “Cidadão presidente, convido-o a interrogar a acusada sobre os fatos de que Hébert acaba de falar, sobre as relações dela com o filho” (ZWEIG, 1981, p. 422). Sabendo que não podia se furtar àquela pergunta, Herman exigiu da ré uma réplica. A ex-rainha, então, levantara a cabeça e proferira em tom de desprezo as seguintes palavras que marcaram o primeiro dia de seu julgamento:

– Se não respondi, foi porque a natureza se recusa a responder tal acusação feita a uma mãe. Apelo a todas as mães que possam estar aqui presentes.

Nesse momento, houve uma mudança de clima no Tribunal, pois a maioria da plateia presente nas tribunas era composta de mulheres, muitas delas mães. Apesar de detestarem a ex-rainha, elas se sentiram compelidas a tomarem o partido da mesma quanto a isso (LEVER, 2004, p. 336).[iv] Depois de falar, Maria Antonieta perguntara em voz baixa a Chauveau-Lagarde se havia respondido bem. Ele, por sua vez, a tranquilizou, dizendo “Madame, soyez vous-même et vous serez touojurs parfaite” (ZWEIG, 1981, p. 424).[v] Durante o resto do dia, o clima das sessões não foi tão intenso, mas nem por isso menos interessante. Perguntaram sobre a participação do conde sueco Axel de Fersen na noite de 20 para 21 de Junho de 1791, quando a família real fugiu das Tulheiras, no episódio que ficou conhecido como “A Noite de Varennes”. Queriam, em fato, culpar a ré por ter influenciado Luís XVI de tomar a decisão de partir e, uma vez posto em liberdade, liderar a contra revolução.

"Apelo a todas as mães que possam estar aqui presentes" (Gravura de Cazenove, 1794).

“Apelo a todas as mães que possam estar aqui presentes”, disse Maria Antonieta sobre a acusação de incesto com seu filho, Luís Carlos (Gravura de Cazenove, 1794).

Entretanto, o fato de terem citado Fersen no inquérito estava intrinsecamente ligado ao possível envolvimento amoroso deste com a ex-rainha. A ré, contudo, nada disse a respeito, exceto que fora o conde quem fornecera a carruagem para a fuga da família real. Com efeito, esse fora um dos únicos momentos em que Maria Antonieta respondeu afirmativamente às perguntas do tribunal. Em seguida, após uma breve pausa, o processo recomeçara, com os testemunhos de Pierre Manuel, homem de letras, que falara de sua participação como procurador da Comuna no dia de 10 de Agosto de 1792; depois Jean-Sylvain Bailly, ex-maire de Paris, que retoma o assunto dos conciliábulos de Antonieta no palácio das Tulheiras, e do envolvimento desta no massacre do Campo de Marte, ocorrido em 17 de julho de 1971, quando cerca de 50 parisienses foram mortos pela Guarda Nacional (BERTIN, p. 111-115). Mais uma vez, não foram apresentadas provas coerentes contra a ré, e então, após o depoimento de mais algumas testemunhas, as sessões de 14 de outubro de 1793 se encerram, às 23h00min. A ex-rainha, por sua vez, retornara para a cela, e lá se atirara na cama, esperando o que o dia seguinte lhe reservaria.

Referências Bibliográficas:

BERTIN, Claude (org.). Os Grandes Julgamentos da História: Maria Antonieta/ Marechal Ney. – São Paulo: Otto Pierre, Editores.

FRASER, Antonia. Maria Antonieta. Tradução de Maria Beatriz de Medina. 4ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2009.

HASLIP, Joan. Maria Antonieta. Tradução de Eduardo Francisco Alves. – Rio de janeiro: Zahar, 1989.

LEVER, Evelyne. Maria Antonieta: A última rainha da França. Tradução de S. Duarte. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

LIMA, Abdon Carvalho. O processo de Maria Antonieta. – 2ª edição. Rio de Janeiro: Laemmert, 1952.

ZWEIG, Stefan. Maria Antonieta. Tradução de Medeiros e Albuquerque. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.


[i] Como a quantidade de tempo era insuficiente para organizar os argumentos em favor da ré, então Lagarde aconselhou Maria Antonieta a solicitar o adiamento do processo, o que lhe foi negado. Desse modo, teriam que se virar em apenas um dia para arrumar a defesa daquela mulher.

[ii] O trecho que acaba de ser citado foi extraído da Gazeta Nacional, ou Monitor Universal (N° 25), traduzido para o português por Abdon Carvalho Lima, em sua obra “O processo de Maria Antonieta”.

[iii] A maioria dos biógrafos de Maria Antonieta, como Zweig, Fraser e Lever, afirmam que Luís Carlos, desde que fora separado da mãe em 03 de Agosto, era submetido a maus tratos e que lhe davam, inclusive, bebida alcoólica. Não obstante, o menino tinha o hábito de inventar histórias, comportamento natural da idade.

[iv] De acordo com Antonia Fraser (2009, p. 476), “algumas delas gritaram, ofendidas, que o julgamento precisava ser interrompido”.

[v] “Madame, sede vós mesma e sereis sempre perfeita”.

10 comentários sobre “Julgamento e morte de Maria Antonieta, a última rainha da França – Parte I

  1. Grata por compartilhar seus conhecimentos, de grande valor histórico! Estou adorando a leitura. Parabéns pelo seu trabalho, sua forma perfeita de redigir textos tão interessantes.

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  2. A história da humanidade, sempre foi, e será entremeada de atos de injustiça, consequentemente, em sua maioria, nascida dos sentimentos de inveja do ser humano!
    A história do casal : Luiz XVI e Maria Antonieta, envolvendo o TRIANON de Paris, lembra muito, a história nossa do Triplex do Guarujá! Lá, pelo menos, os algozes do casal de monarcas, incluindo o filho, a cunhada, foram todos guilhotinados, pela guilhotina idealizada por Robespière. Aqui, certamente, os tubarões do poder, atuantes, desde Dom João VI, permanecerão dizimando os sonhos dos menos favorecidos. Fazer, o quê? Maria Antonieta e Luiz XVI, hoje, são venerados por franceses e turistas estrangeiros. Todavia, pouquíssimos humanos sabem o nome dos seus malditos algozes. Itamar

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  3. É muito lindo esse artigo!!”e ao mesmo tempo muito triste!! Parabéns ao altor dessas matérias históricas das quais venho acompanhando!! Em muitas vezes fico facinada com essas lindas histórias da realeza do passado e do presente!! Mas essa de Maria Antonieta fiquei triste com o ocorrido!! Será que foi ela mesma responsável por tantos
    problemas e alguns crimes!!??? Sendo q Antigamente haviam tantas conspirações!!
    havia muitas conspirações!!

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  4. Um excelente trabalho realizado.
    Esclarecedor e que traz à tona um pouco de História, de fatos havidos e com isso enriquece a Cultura.
    Parabéns aos idealizadores / divulgadores.
    ” Só o Conhecimento pode livrar o homem da escravidão e do fanatismo intelectual”.

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