Duas Rainhas, uma Coroa: resenha do livro “Elizabeth & Mary: primas, rivais, rainhas”

DUNN, Jane. Elizabeth e Mary: primas, rivais, rainhas. Tradução de Alda Porto – Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

Elizabeth I e Mary Stuart permanecem como dois estereótipos femininos ainda hoje não totalmente desmitificados pela historiografia. De acordo coma a visão romântica que permeia o olhar de muitos dos pesquisadores da Dinastia Tudor, a primeira é preferencialmente identificada como firme e imperiosa, a rainha que derrotou a armada e governou uma era de ouro, enquanto a segunda não passava de uma mulher seduzida pelas paixões e que foi capaz de sacrificar seu próprio reino para se casar com o homem que queria. Essa impressão simplista é principalmente trabalhada por alguns autores de escola mais tradicional, como Jacques Chastenet, que por meio do levantamento de fontes constrói uma narrativa em que as qualidades da soberana inglesa são exaltadas a fim de diminuir os atributos de sua prima. Contudo, até o início do século XXI nenhuma publicação havia adotado como tema principal o relacionamento de ambas monarcas. Até então, era possível se encontrar grandiosíssimos ensaios sobre a vida separada das duas, entre os quais o de Antonia Fraser (Mary Queen of Scots – 1969) e Anne Somerset (Elizabeth I – 1992). Só em 2003 é que o mercado ganha um livro de meticulosa pesquisa documental, destinado não à existência separada de uma delas, mas sim sobre a conturbada comunicação que mantiveram ao longo de mais de três décadas.

Lançado no ano em que se comemorava 400 anos da morte da filha de Henrique VIII e Ana Bolena, “Elizabeth & Mary: primas, rivais, rainhas”, de Jane Dunn, constitui-se numa história híbrida acerca de agentes históricos, que não tem uma preocupação com a ordem cronológica dos fatos, porém com a dinâmica estabelecida entre os mesmos. Membro da Royal Society of Literature, Dunn é uma célebre biógrafa, reconhecida pelos seus excelentes trabalhos sobre Mary Shelley (Moon in Eclipse: A Life of Mary Shelley) e também o icônico “A Very Close Conspiracy”, acerca do relacionamento entre Virgínia Woolf e Vanessa Bell. Todavia, é com Elizabeth & Mary que ela obtém maior reconhecimento por parte do meio acadêmico, sendo inclusive utilizada posteriormente como referência para muitas obras e romances, entre eles os da escritora inglesa Philippa Gregory. Foi como biógrafa e não como historiadora que Dunn resolveu penetrar na história dessas duas rainhas, no intuito de descortinar uma trajetória que, apesar de já ser amplamente discutida, oferece-nos uma riqueza de fontes que, por sua vez, permitem sempre um novo olhar sobre os acontecimentos, dotando-os de maior energia e espontaneidade. Duas características que são muito valorizadas pelo leitor contemporâneo.

Jane Dunn, autora de "Elizabeth & Mary".

Jane Dunn, autora de “Elizabeth & Mary”.

Dividido em doze capítulos, mais prefácio e caderno ilustrado, a obra em questão trata de um relacionamento que, nas palavras da própria autora, durante as vidas de Elizabeth I e Mary Stuart acabou por desenvolver movimentos próprios, mantendo as suas protagonistas sempre presas uma à outra.  Durante quase todo o livro, o leitor observa como a narrativa dos acontecimentos oferece interessantes pontos de comparação sobre a personalidade de duas monarcas que, apesar de conviverem numa mesma ilha, jamais se encontraram. Esse aspecto, segundo Dunn, é o fator mais desconcertante da história de ambas. Na falta de contato físico, a imaginação criara uma imagem, ora de grandeza, ora de vulnerabilidade, na mente de cada uma. É provável que Elizabeth, sabendo dos encantos de sua prima, a que nem mesmo os detratores estavam imunes, sentia medo de também acabar por fazer parte do cordão dos deslumbrados que parecia seguir a rainha da Escócia para onde quer que ela fosse estando ela em cativeiro ou não. Não obstante, durante sua construção argumentativa, Dunn não resiste à tentação que também acometera a outros escritores, e traça quase que a todo o tempo um paralelo entre as duas mulheres, ressaltando onde a soberana inglesa vencera e em quê sua rival malograra, e vice versa.

No primeiro capítulo, intitulado “O passo decisivo”, a autora estabelece o contexto em que ambas soberanas subiram ao trono de seus respectivos reinos. Enquanto Mary Stuart, já rainha da Escócia pelo seu nascimento e agora Delfina da França graças ao seu casamento com o herdeiro da coroa, esbanjava charme e elegância em seu vestido branco de noiva, Elizabeth passara por desafios muito mais tortuosos para enfim assumir o reino da Inglaterra. Mais adiante, nos capítulos dois e três, observaremos como a infância e a juventude de ambas contribuiu para que demonstrassem comportamentos diferentes uma vez rainhas de um povo dividido por facções e clãs. Na medida em que Mary tivera uma infância alegre e despreocupada na corte francesa, educada mais para ser a futura consorte de um rei que qualquer outra coisa, a filha de Henrique, desde a morte da mãe (decapitada por ordens do próprio marido), passara a ser uma estrangeira na corte do pai, improvável sucessora da monarquia, não obstante a sua natureza de mulher. Criada no luxo do palácio de Fontainebleau, sem dúvida nem sequer passava pela cabeça de Mary como eram as noites frias dentro dos muros da Torre de Londres, onde Elizabeth ficou sob a acusação de conspirar contra a vida e o reinado de sua irmã mais velha.

Segundo supõe-se, a diferença de idade entre as duas (Elizabeth tinha quase 10 anos a mais que sua prima) deveria indicar que a mais velha aconselhasse a mais jovem e que esta de bom grado aceitasse os conselhos, mas não. Conforme o pensamento de Jane Dunn, especialmente demonstrados no capítulo quatro “O aprendizado de uma rainha”, as experiências que moldariam o caráter de Mary frente a situações perigosas só viriam quando ela, já viúva, retornara para a Escócia. Elizabeth, por outro lado, tivera as suas ainda quando estava à margem da coroa, de modo que quando ela sucedeu a falecida irmã, já estava preparada para os perigos que viam junto com seu cargo e posição. Em algumas passagens de seu livro, a autora chega a ser confusa no relato de alguns acontecimentos, principalmente porque em quase todo o tempo ela vai e volta na história de uma das soberanas, além de, como já apontado anteriormente, não ter uma preocupação com a ordem cronológica dos fatos. Já no capítulo I, por exemplo, podemos sentir a sombra do machado do carrasco pairando no pescoço de Mary, mesmo que essa perspectiva nem sequer passasse pela sua cabeça, ou na de seus inimigos, ainda nas primeiras duas décadas de sua vida. Contudo, uma segunda leitura de determinadas passagens é mais que suficiente para esclarecer quaisquer dúvidas que possam vir a surgir ao longo do livro.

Capa da edição brasileira de "Elizabeth & Mary", lançada pela editora Rocco em 2004.

Capa da edição brasileira de “Elizabeth & Mary”, lançada pela editora Rocco em 2004.

Por não considerar Elizabeth a verdadeira herdeira do trono, então se inicia uma verdadeira guerra entre as duas rainhas, com a figura de Mary o tempo todo envolvida em conspirações para usurpar o trono da Inglaterra. Para Jane Dunn, enquanto Mary Stuart era passional e impetuosa, porém cheia de encanto pessoal, sua prima era uma mulher que sacrificara a própria felicidade em prol dos interesses de Estado. Ambas estiveram envolvidas em casos escandalosos envolvendo cortesãos, embora Elizabeth tenha saído com a reputação ilesa destes, ou quase isso. Nas palavras da autora, “parte do drama da vida das duas é essa grande oposição entre suas naturezas, as primeiras experiências e os tipos de soberana que desejavam ser”. Sendo assim, é possível dizer que é a partir dos contrastes que a rivalidade entre elas se estabelece. Porém, como Dunn mesmo mostra, havia esclarecedoras simetrias entre a trajetória de ambas, como o fato de terem mães admiráveis, mas que perderam prematuramente por razões de Estado. A tensão do relacionamento entre elas viria a aumentar no momento em que Mary é destronada e pede abrigo nos domínios de sua parenta. A partir desse ponto, era como se Elizabeth sentisse que a ameaça ao seu cetro estivesse cada vez mais perto, representada na figura da prima. Algo que só a morte poria um término.

O fato de Mary ser suspeita de participar no assassinato de seu segundo marido e de ter casado com o possível mandante do crime, só fez com que sua reputação declinasse, causando, de certa forma, regozijo aos olhos da prima. Entretanto, no momento em que a ci-devant rainha da Escócia passa a residir em Inglaterra, tonara-se, no dizer de Jane Dunn, a maldição da vida de Elizabeth, uma vez que seus conselheiros a exortavam a tomar uma atitude severa contra a mesma. A autora, por sua vez, é exímia em denotar que enquanto a soberana inglesa constantemente vacilava em tomar suas decisões, Mary Stuart era mais decidida e não pensava duas vezes antes de se agarrar a um raio qualquer de esperança que pudesse livrar-lhe de seu cativeiro. Esse temperamento, por sua vez, acabaria por custar caro para ambas monarcas. No capítulo dez, por exemplo, sentimos o desespero da rainha da Inglaterra ao procurar uma saída para a situação de sua prima, na medida em que esta procurava de todas as formas solucionar tais assuntos à sua maneira.

Apesar de não se tratar de uma obra historiográfica, Elizabeth e Mary: primas, rivais, rainhas traz em seu conteúdo inúmeras referências a documentos tanto de ordem estatal, quando pessoal, que contribuem para o desenvolvimento da narrativa. Com uma visão por vezes romântica dos acontecimentos, Jane Dunn se mostra suscetível ao encanto das duas soberanas e consegue construir uma trama bastante proveitosa para a comunidade acadêmica e que traz entretenimento mesmo ao leitor desinteressando, que quer apenas conhecer um pouco mais sobre a vida de tais personagens. No último capítulo do livro, “A consequência do delito”, observamos uma emocionante abordagem acerca do desfecho da tragédia do relacionamento das duas rainhas. Com sua morte, Mary Stuart conseguira vencer, partindo deste mundo em nome da religião católica e com isso conquistando seu lugar no panteão dos mártires da Igreja. Elizabeth, por sua vez, após a derrota da armada se elevara como a Gloriana, representando uma idade próspera na história daquela ilha. Com efeito, finaliza Dunn, o relacionamento entre as duas soberanas transcenderia à posteridade, representado na figura de Jaime Stuart (VI de Escócia e I de Inglaterra), o herdeiro de sangue de Mary e da religião de Elizabeth.

Renato Drummond Tapioca Neto

Graduando em História – UESC

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