A Imperatriz, o Demonão e a Marquesa

PRIORE, Mary Del. A carne e o sangue: A imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro I e Domitila, a marquesa de Santos. – Rio de Janeiro: Rocco, 2012.

O século XIX é repleto de figuras e personagens exóticos que marcaram toda uma geração e inspiraram romancistas e biógrafos ao longo dos anos posteriores. Desse ínterim, podemos destacar a personagem da rainha Vitória e o seu amor pelo príncipe Albert, ou a vida de Napoleão I com a Imperatriz Josefina. Porém, dos interstícios de um Brasil afastado do continente europeu, encontramos um caso de paixões e intrigas não menos interessante do que a das demais partes do globo, protagonizado pelo nosso primeiro imperador constitucional e por sua amante Domitila de Castro, nobilitada pelo parceiro com o título de Marquesa de Santos. No outro vértice desse relacionamento, por sua vez, notamo-los uma jovem e desiludida arquiduquesa austríaca, que exerceu grandiosa influência no cenário político do país. Interessada pelos quadros pitorescos oferecidos por esse verdadeiro “triângulo”, eis que Mary Del Priore, umas das historiadoras brasileiras mais bem conceituadas nesses últimos anos, resolve lançar um livro cujo intento é oferecer mais esclarecimento sobre um tema deveras retratado pelos arautos da História do Brasil.

Já tendo demonstrado sua perícia em assuntos referentes à vida privada do Império, Mary Del Priore encanta o leitor pela forma linear com a qual narra os acontecimentos, sem deixar, contudo, de atribuir aos fatos a sua preciosa análise, rebuscada de elementos próprios a uma escrita romanesca. Vencedora de prêmios como o Jabuti, Casa Grande e Senzala e Sérgio Buarque de Holanda, Priore ainda é famosa por livros como A “Condessa de Barral”, que conta a trajetória da intelectual e famosa amante de D. Pedro II, além de “Histórias Íntimas” e “Ao sul do Corpo”, que revelam curiosidades sobre a vida íntima e sexual dos brasileiros. Não obstante, a autora ainda se destaca como organizadora de ilustríssimas coletâneas de textos, como “História das Mulheres no Brasil”. Entretanto, em “A Carne e o Sangue”, além discorrer com perfeição de arranjo sobre os aspectos mais relevantes da existência dos personagens centrais, a autora consegue englobar todo um jogo de articulações e manobras diplomáticas, que acabam levando esse triângulo envolvendo o Imperador, sua esposa e amante, para uma esfera global.

Mary Del Priore.

Mary Del Priore.

Dessa forma, Priore evidencia como as cortes européias (principalmente a austríaca, da qual provinha a Imperatriz Leopoldina), não estavam alheias à situação do Brasil. Em fato, muitas das fontes primárias utilizadas pela escritora são compostas de cartas e missivas de embaixadores, assim como relatos de cronistas que estiveram no país por esse período. Nos capítulos iniciais, ela começa por contar de forma breve a vida de D. Leopoldina, e em quais circunstâncias ela veio da sua Viena natal para uma terra tão longínqua. Destarte, para a futura soberana, fora um verdadeiro dilema se adaptar ao clima e aos costumes de um reino tão singular em relação ao qual viera. Todos os súditos de D. João VI esperavam uma bela noiva, mas o que encontraram foi uma mulher de beleza mediana, mas com uma educação tão refinada que, por sua vez, compensaria a falta de atributos estéticos. A autora aprofunda ainda mais sua análise ao investigar qual era o relacionamento que a filha de Francisco I mantinha com a sogra, Carlota Joaquina, de quem ela deplorava o caráter e as maneiras.

O livro possui nove capítulos, cada um dos quais contendo tópicos específicos de assuntos referentes ao tema em questão. Em 252 páginas, Mary Del Priore estabelece uma verdadeira viagem que começa ainda com a chegada da princesa real ao Brasil e as maquinações dela e do ministro José Bonifácio para proclamar a independência do Brasil. A autora deixa claro o medo que Leopoldina sentia que uma revolução semelhante à ocorrida na França em 1789 se instaurasse nos domínios de seu marido e fizesse derrubar as cabeças coroadas dela e dele, tal como ocorreu com Maria Antonieta (sua tia-avó) e Luís XVI, em 1793. Tal apreensão é demonstrada pelas cartas que a jovem enviava à sua família, ressaltando o despreparo de D. Pedro e o amor que este nutria pelas ideias liberais. Sendo assim, as circunstâncias calamitosas em que o reino do Brasil se encontrava necessitava de uma intervenção, e Leopoldina não tardou em tomá-la. Pedro, que em meados de 1822 se encontrava em São Paulo, recebera do Rio de Janeiro as missivas de sua esposa e do ministro, implorando-lhe que desatasse de vez os laços que ligavam esta terra a Portugal. E assim o foi!

Todavia, para infortúnio da Imperatriz, seu esposo havia conhecido uma fogosa mulher, de atrativos sexuais muito mais singulares aos que encontrava no leito conjugal. Mary Del Priore dedica quase inteiramente o IV capítulo da obra (“Madame La Grande Maiîtresse” ou a mulher de fogo) a tratar da vida de Domitila de Castro Canto e Melo e de como ela possuía um caráter de independência até então pouco comum às mulheres do período, exceto nas paulistanas. Aqui, a autora estabelece um panorama da sociedade de São Paulo da época, composta principalmente de mulher solteiras e acostumadas a trabalhar para cuidar de seus filhos. Foi em meio dessas matronas que cresceu Domitila, cheia de vida e impetuosidade e graças a eles que ela conquistara D. Pedro, além do fato de possuir formas físicas muito valorizadas pelos homens de então.

O Triângulo amoro: Domitila de Castro, D. Pedro I e D. Leopoldina.

O Triângulo amoroso: Domitila de Castro, D. Pedro I e D. Leopoldina.

Quanto a Leopoldina, ela era o oposto da futura marquesa de Santos. Dessa forma, torna-se irresistível para a autora estabelecer um paralelo entre as duas, onde se percebe o luxo e a exuberância da amante, em detrimento da simplicidade da esposa. Entretanto, nesse aspecto, é possível dizer que Mary Del Priore deixou escapar um detalhe importantíssimo acerca dos motivos pelos quais a imperatriz não se vestia com frivolidade: em uma de suas cartas à irmã Maria Luiza, ela a agradece pelos belos tecidos que a enviara, os quais seriam utilizados especificamente para a confecção de trajes para suas filhas, uma vez que seu marido não permitia que ela se vestisse conforme a moda européia, pois que, segundo ele, ela poderia estar com segundas intenções ao fazê-lo. Sendo assim, percebe-se que, embora D. Leopoldina não demonstrasse frivolidade na sua composição estética devido à sua própria vontade, também estava condicionada pela vontade do imperador em agir assim. Em contrapartida, como bem demonstra Mary Del Priore, D. Pedro gastava com inúmeras peças de roupas e adornos para sua amante, presenteando-lhe inclusive com um palacete onde ela recebia emissários advindos de outras partes do globo.

D. Leopoldina sempre foi dotada de um caráter passivo e submisso para com a vontade masculina, porém, enquanto estava na sua última e fatal gestação cansou-se de toda humilhação que lhe era infligida pelo marido e ameaçou voltar para a Áustria e deixá-lo só no Brasil. D. Pedro, que sabia da extrema popularidade de que gozava a mulher perante os súditos, convenceu-a do contrário (nesse aspecto, Mary Del Priore desacredita a versão da História positivista de que D. Pedro teria agredido fisicamente a mulher, ocasionando por isso no falecimento desta). Quando partiu para o sul, em fins de 1826, a imperatriz se despedira dele com uma frase que certamente fora irresistível para a autora deixar de referir: “Eu estou morrendo […] quando você voltar do Rio Grande, eu não estarei mais aqui…”. Parecia que a desafortunada princesa estava prevendo o seu destino, pois quando Pedro realmente regressou à corte, sua esposa já não mais estava entre o mundo dos vivos. Priore utiliza-se aqui de passagens do livro da cronista inglesa Maria Graham (“Diário de uma viagem ao Brasil”) para relatar a reação do público perante o falecimento seu sua honorável “mãe”, e do ódio que passaram a sentir por Domitila.

Era chegado então o momento de Pedro escolher uma nova consorte e tão logo os olhos da marquesa de Santos se encheram de esperança. Nesse aspecto, a autora revela-nos um detalhe até então pouco explorado pelos biógrafos: a ascendência de Domitila de Castro. Para muitos, ela era apenas uma simplória dama, antes de ser elevada à benevolência do imperador. Porém, para fortificar seu direito a ocupar o trono do Brasil, fora feita uma árvore genealógica de sua família que chegava a personagens ilustres como a própria Inês de castro. Todavia, o Imperador tinha outros planos e queria estabelecer ligações mais estreitas com a Europa. Escandalizados pelo relacionamento extraconjugal de Pedro e pela morte precoce da Imperatriz, nenhuma das cortes queria fornecer uma noiva para o país. A solução seria a que Pedro menos queria tomar: expulsar Domitila da corte (que á época estava grávida do imperedor). Dessa forma, estaria satisfazendo as vontades de seu sogro, Francisco I da Áustria, e dos demais interessados no assunto. Então, quando todas as esperanças estavam no fim, eis que surge a bela Amélia de Leuchtenberg, que afastaria de vez o fantasma da marquesa.

A Carne e o Sangue - Mary Del Priore.

A Carne e o Sangue – Mary Del Priore.

Ao chegar ao Brasil, D. Amélia se deparou com uma corte totalmente bagunçada e dedicou-se a disciplinar a criadagem e a criar uma espécie de protocolo real, algo que D. Leopoldina não havia feito em seus tempos de Imperatriz. Os anos se passariam, D. Pedro seria saudado como o proclamador da Independência, mas seu relacionamento com a marquesa e as dores que causou na Imperatriz jamais seriam esquecidos. Nos capítulos finais da obra, eis que o leitor tem da autora uma resposta para o título que escolhera para batizar o livro, “A carne e o Sangue”: em cartas à amante, o imperador falava em fazer com ela “amor por devoção”, enquanto que com a esposa fazia “amor de matrimônio”. O que se conclui do primeiro são os desejos carnais que Domitila satisfazia, enquanto o outro estava estritamente ligado à perpetuação da linhagem, ou seja, a continuação do sangue real. É interessante perceber que a final de contas, os desejos do sangue falaram em D. Pedro muito mais alto do que os da carne, e para isso, figuras como a sua querida “Titília” estavam muito abaixo das obrigações inerentes à posição de um monarca: a ramificação de sua dinastia.

Renato Drummond Tapioca Neto

Graduando em História – UESC

9 comentários sobre “A Imperatriz, o Demonão e a Marquesa

    • Formidável e muito bem escrito. As desilusões de D. Domitila foram reveladas numa novela da Globo que mostrou o sofrimento da amante de D. Pedro ser recusada na corte. Glória Menezes interpretou o papel regiamente, apareceu até a gravidez do filho bastardo. Parabéns Renato! Quem sabe lendo o seu blog os alunos se entusiasmam em aprender a História do Brasil. Sua prima Mary!

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    • Muito Obrigado Mary. Me empenho a cada dia para trazer informações, que antes só estavam disponíveis em livros, para a rede. Também espero que os alunos se entusiasmem mais pela História de seu próprio país… Abraço de seu primo, Renato!

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    • Glória Menezes só apareceu como Domitila de Castro no filme Independência ou Morte, dos anos 70.
      A novela que mostra a história da marquesa foi aquela protagonizada por Maitê Proença, na TV Manchete. Essa sim mostra-a pedindo por reconhecimento dos filhos etc.

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