Elizabeth Bathory: a história por trás da lenda da “condessa sanguinária” – Parte I

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

A famosa “Condessa sanguinária” figura entre as mulheres acusadas de serem as maiores assassinas da história, já tendo servido de inspiração para muitos escritores e cineastas. Sua imagem é pejorativamente associada à de uma pessoa obcecada pela juventude, a ponto de se banhar em sangue para preservar a própria beleza. Numa época em que era comum a nobreza castigar a criadagem desobediente, Elizabeth Bathory foi apontada como causadora da morte de diversas pessoas. As acusações de assassinato em torno dela aumentaram e uma ordem de investigação contra a mesma foi executada. Em 1610, um caderno de propriedade da nobre foi encontrado contendo o nome de aproximadamente 650 vítimas. A condessa foi então julgada e considerada culpada por todos os crimes. Sua sentença:  permanecer trancada numa cela escura pelo resto de seus dias. Com efeito, quase toda a sua história parece se resumir às acusações que foram feitas contra ela nesse processo, de modo que se torna muito difícil levantar dados biográficos mais consistentes. Pesquisas recentes, porém, avaliam a possibilidade da condenação de Elizabeth Bathory ter sido uma trama orquestrada pelo rei da Hungria, para se livrar das dívidas contraídas para com seu marido e se apoderar de sua herança.

Retrato póstumo de Elizabeth Bathory, por artista desconhecido.

Nascida em Nyírbátor (hoje parte da República eslovaca) em 7 de agosto de 1560, Elizabeth Bathory pertencia a uma renomada família de nobres protestantes, da qual também descendia Stephen Bathory, rei da Polônia, além de alguns membros da Igreja e outros notórios heróis de guerra. Quando criança, recebeu uma educação esmerada, distinguindo-se assim de seus contemporâneos, em suma analfabetos. Era fluente em sua língua natal, no latim e no alemão. Apesar disso, não teve uma infância feliz, graças à sua fragilizada saúde e por ter crescido num período ao qual a Hungria sediava guerras entre austríacos e turcos. De acordo com os registros, quando tinha cerca de nove anos de idade, Elizabeth resistiu a uma invasão de tropas inimigas ao castelo de Csejthe, residência de sua família, e provavelmente presenciou a morte de suas irmãs mais velhas, que primeiro foram estupradas e depois assassinadas. Uma cena que, certamente, perturbaria seus pensamentos pelos longos anos que ainda viriam. Não obstante, seu pai, George Bathory, era famoso por aplicar castigos severos àqueles que infligiam suas leis, sendo possível que alguns deles tenham sido assistidos pela jovem (como quando um cigano, acusado de sequestrar crianças, foi aprisionado dentro da barriga de um cavalo morto, apenas com sua cabeça deixada para fora).

Em 1571, Elizabeth ficou noiva de Ferenc Nadasdy, graças às tramoias políticas da mãe do mesmo, que ambicionava elevar o status social de sua família. Nascido em 6 de outubro de 1555, Ferenc pertencia a uma família cujas origens podiam ser retraçadas até o século VIII da era cristã. Seu país de origem, contudo, era a Inglaterra. Alguns ancestrais haviam sido convocados para ir até a Hungria lutar contra os inimigos dos aliados da Coroa inglesa e por lá se estabeleceram, principalmente na região oeste do país, perto da fronteira austríaca. A união com Ferenc seria determinante na formação da suposta desenvoltura sanguinária pela qual a condessa ficara marcada nos anos vindouros. De acordo com Valentine Penrose:

Quando seu marido guerreiro voltava ao castelo entre suas batalhas, isso significava para Elizabeth uma grande honra, e também distrações. Ele trazia numero séquito; os criados entorpecidos despertavam, os cavalos eram tratados, os cachorros favoritos faziam festa. Nessa época em que ela ainda não tinha filhos, a condessa solitária fazia sua aparição, jovem, muito pálida e muito ornada. Ela tinha imergido, para ficar mais branca, numa suave água de vitela e tinha-se friccionado com unguento de pé de carneiro. Um pouco das essências turcas de jasmim e rosa, enviadas da Transilvânia pelo seu primo Sigismundo, fazia desaparecer aquele odor de matadouro (PENROSE, 1992, p. 21).

General temido pelas tropas inimigas por sua crueldade, Ferenc teria ensinado variados métodos de tortura à sua mulher. A lenda obscura criada em tordo da condessa diz que Elizabeth treinava tais métodos com os criados mais indisciplinados, enquanto seu marido estava em campanha militar. Por outro lado, diz-se que Ferenc ao mesmo tempo em que admirava sua esposa pela beleza, também tinha certo receio dela, devido à sua postura autoritária, pouco usual em uma nobre que foi educada para o casamento.

Stephen Bathory, rei da Polônia.

Na época em que a condessa viveu, o padrão de beleza feminino celebrava o culto à mulheres de cabelos loiros, olhos claros, lábios pequenos e proporções corporais delicadas, conforme podemos observar nos vários retratos da virgem Maria e de Vênus, pintados no período. Infelizmente, o único retrato pintado de Elizabeth Bathory em seu tempo de vida pouco contribui para averiguar as características de sua lendária beleza. Mas, de acordo com os registros, ela era considerada uma mulher fascinante, com sua cultura erudita, um modo sinuoso com que costumava cerrar as pálpebras de cílios castanhos para atrair seu interlocutor e seu porte altivo e misterioso. Tendo testemunhado verdadeiros horrores na infância e se casado por conveniência, não era de se esperar que fosse uma mulher feliz. Frequentemente doente, ela vivia cercada de uma grande quantidade de serviçais, que estavam à sua disposição munidos com remédios entorpecentes, para curar sua dor de cabeça. Todas as manhãs a condessa era cuidadosamente penteada por suas criadas, que arrumavam seus cabelos para trás, revelando uma testa inteligente e seu rosto oval. Cosméticos a base de mercúrio e açafrão eram aplicados à sua pele, para realçar a brancura da tez. Logo após era vestida com um traje de veludo e seda; uma touca que ressaltava seu status de mulher casada era colocada na cabeça e depois um colar de rufos, no estilo inglês, era atado ao pescoço.

As histórias sobre a suposta maldade da condessa Elizabeth Bathory parecem nublar quase todos os registros que sabemos acerca de sua vida. Na crença popular húngara, as punições mais leves praticadas por ela consistiam em enfiar agulhas entre as unhas de seus servos, atacá-los com mordidas e/ou dilacerar sua carne (dizem que em certa ocasião aconteceu de abrir a mandíbula de uma de suas empregadas até que o canto da boca se rasgasse). É preciso ter em mente que estamos falando de uma época em que direitos humanos não existiam, de modo que corretivos severos costumavam ser aplicados na criadagem, principalmente naquela parte do continente europeu. Acometida por fortes dores de cabeça, é bem provável que a condesse aplicasse alguns tabefes e beliscões em empregados que não executavam as ordens de forma precisa. Gritos e cenas desagradáveis também podiam ocorrer. Por outro lado:

A despeito da má fama de Elizabeth Bathory, as camponesas afluíam e subiam cantando o caminho do castelo. Eram moças muito jovens, na maioria bonitas, louras, com pele bronzeada, não sabendo nem mesmo assinar os seus nomes, supersticiosas e desajeitadas. A vida dessas jovens em casa, sobretudo nas cercanias de Csejthe ‘onde as pessoas eram ainda mais estúpidas do que nos outros lugares’, era menos invejável do que a vida dos bois de seu pais. Ujváry János, o criado de Elizabeth, não tinha nenhuma dificuldade em traze-las das aldeias vizinhas para faze-las entrar para o serviço da castelã do Nyitra. Bastava prometer às suas mães uma saia nova ou uma pequena jaqueta (PENROSE, 1992, p.64-5).

Entretanto, a mesma criadagem que afluía para o castelo de Csejthe começou a espalhar histórias da suposta maldade e violência de sua senhora. Numa época em que era costume entre os nobres castigarem sua criadagem, Elizabeth ganhou fama de ser a mais severa dentre seus pares, chegando até mesmo a procurar (e em certo grau inventar) motivos para exercer tais correções. Diz-se que suas sentenças podiam variar até mesmo de acordo com as estações do ano: no inverno, ela ordenava que os desobedientes fossem despidos e jogados na neve para receberem banhos de água fria e morrerem congelados; no verão, ela os amarrava em árvores com o corpo coberto de mel para que os insetos devorassem-nos ainda vivos. Todo esse folclore criado em tordo da lenda da “condessa sanguinária” atravessou a espessura do tempo, de modo que hoje é muito difícil saber o que é fato e o que ficção em tais narrativas.

O conde Ferenc Nadasdy, marido de Elizabeth Bathory.

Com efeito, muitos acreditam que, além de uma infância perturbada, a suposta maldade de Elizabeth também foi influência por alguns membros de sua família, embora não tão ilustres quanto os que foram citados anteriormente: é caso de seu irmão, Stephan, que era alcoólatra e dotado de certo comportamento libertino; de seu tio acusado de adesão às práticas de magia negra e do culto ao demônio; e de sua tia, Klara Bathory (conhecida por “se divertir” das formas mais exageradas com seus empregados). Esta última, por sua vez, estaria intimamente ligada à sua sobrinha. No processo difamatório movido contra Elizabeth anos depois, foi dito que as duas mantinham um relacionamento que ia além dos laços fraternais (alguns pesquisadores dão ênfase à hipótese de que Elizabeth e sua tia Klara mantinham um romance lésbico). Muitas pessoas que deviam dinheiro ao conde Nadasdy, incluindo nobres de outros países, começaram a espalhar boatos de que a condessa era uma mulher perversa e libertina. Opinião essa que contrastava com outros relatos da época: foi dito que quando Elizabeth deu à luz em 1585 a uma menina batizada de Anna, ela era uma boa mãe, atenciosa e carinhosa. Ela e Ferenc teriam mais duas filhas, Ursula e Katherina, e em 1598 um menino chamado Paul.

De acordo com os termos de acusação levantados no processo contra Elizabeth, ela contou com a ajuda de vários cúmplices, que encobriam todos os seus atos criminosos. Sem eles, ela provavelmente teria sido desmascarada muito antes do que pudesse imaginar. Ao seu lado estava um serviçal conhecido apenas pelo nome de Fczkco; Helena Jo; a ama de leite de seus filhos, apelidada de Dorka; e uma lavadeira conhecida como Katarina Beneczky completava o quinteto. Em 1604, o conde Nadasdy morreu e, depois de quatro semanas de intenso luto, Elizabeth decidiu que era hora de continuar sua vida na bem-aventurada corte de Viena. De acordo com Penrose:

Nos retornos de Viena, Elizabeth parava às vezes para uma visita ou um banquete nesse antiquíssimo castelo de Forchtenstein, pertencente aos Esterházy. A província, próxima da fronteira, já é quase húngara. Ao longe, vê-se um lago cercado de aldeias brancas com telhados encimados por ninhos de cegonhas. Ouve-se às vezes o antigo tàrogàto, a longa flauta húngara de madeira e de chifre, que ainda é usada para acompanhar o interminável e selvagem lamento da ‘Dama de Csejthe’. […] Dizem que lá existe, entre os retratos, o de uma condessa muito bela e muito cruel que, em outra época, descia os Cárpatos para ir a VIena e costumava parar ali (PENROSE, 1992, p. 91).

Foi na corte dos Habsburgo onde se diz que Elizabeth conheceu Anna Darvulia, que supostamente lhe ensinou novas táticas de tortura e, de acordo com alguns pesquisadores, também se tornou sua amante (até hoje, a suposta homossexualidade de Elizabeth Bathory se constitui numa afirmação bastante preconceituosa, utilizada para alimentar a lenda pejorativa da “condessa de sangue”). Naquela época, porém, a nobre já estava com 44 anos, idade considerada avançada para uma mulher do período. Muito vaidosa, ela viu aos poucos sua pele marmórea ganhar as primeiras rugas. É nesse ponto que começa a lenda dos seus famosos banhos de sangue.

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Referências Bibliográficas:

ALVES, Daniel. Serial-Killers: A Condessa Sanguinária. 2011. Acesso em 05 de Outubro de 2012.

PIZARNIK, Alejandra. A condessa sangrenta. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro – São Paulo: Tordesilhas, 2011.

PENROSE, Valentine. Erzsébet Báthory a Condessa Sanguinária. Tradução de Helder Moura Pereira. – Lisboa: Assírio & Alvim, 2004

Filmografia:

The Countess” (2009) – X Film International Home Entertainment

5 comentários sobre “Elizabeth Bathory: a história por trás da lenda da “condessa sanguinária” – Parte I

  1. Eu ia te mandar uma mensagem no teu facebook perguntando se você já tinha escrevido algo sobre ela. Estes seus artigos foi o que eu li de mais sério sobre ela. Os que eu li achei muito levado pela vibe gótica/black metal. Você sabe me dizer se tem alguma biografia histórica dela, escrita seriamente, sem balelas da cultura gótica, que se preocupa mais a cultuar o lado sanguinário dela do que a história em si. Abraços!

    PS: Tem aquele filme, “Condessa de Sangue”, você assistiu? O que achou?

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    • Muitíssimo obrigado Ana! Tentei com esse texto despor Elizabeth Bathory da imagem de vampira que a Era Vitoriana criou, e aproximá-la mais da mulher de carne e osso que fora. No Brasil dispomos de pouquíssimo material publicado sobre ela: há o romance histórico “A Condessa Sangrenta”, escrito por Alejandra Pizarnik e também a biografia de autoria de Valentine Penrose, “Erzsébet Báthory a Condessa Sanguinária”. Acredito que este último seja o tipo de livro que você esteja procurando. Utilizei-o inclusive para compor essa série de posts. Quanto ao filme, já assisti sim e futuramente pretendo fazer uma resenha do mesmo para postar aqui no blog, objetivando desfazer os estereótipos que ele aborda do personagem central. Abraços!

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  2. Sugiro o trabalho de Radu Forescu e Raymond McNally (historiadores), “Em busca de Drácula e outros vampiros”, creio que em português é o que há de mais acurado historicamente sobre folclore, e sobre as personagens históricas, tanto Vlad quanto Erzsébet. Renato o filme que tu viu foi o da Julie Delpy ou o com a Anna Friel?

    Gosto muito do site e dos artigos em geral, mas acho que a abordagem sobre a Condessa no texto ainda está muito apegada a figura “mítica” dela!

    Abraço 🙂

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